[Rio de Janeiro, 1982]
Armando,
Passei esta noite de sexta-feira escrevendo a continuação da “Aventura na casa atarracada” (história fantástica à moda de Poe),[1] e versificando seu poema “Na beira, com os olhos abertos”, como uma louca a compor quebra-cabeças de mil peças. Não são mil, mas reparo outra vez a insistência de seus effes; de trezentos mil, parece, fizeram uma torre bem alta em Paris, e não era de marfim, mas puro ferro. Por obra sua escapei de me lançar do alto dela, mas no teu poema belo esse excesso, contraditoriamente, acredito, anuncia uma renúncia. Nos próximos outros effes, serão cortados como num Fla-Flu final de campeonato; serão cortados assim, definitivamente, voos supérfluos em direção ao chão. Mas eu te dizia… Estou sujíssima. Não sei como poderei pegar no sono. A literatura me perturba. Uma caixa cheia de cartões-postais me perturba. A renúncia me perturba. Até uma caixa d’água, um otorrino gauche, um índice onomástico. Tomo tudo na veia. Os calcanhares (de Aquiles ou Mercúrio?) me pinicam. Os objetos me olham histericamente. Ora vá tomar banho, você diria da sua gaiola de loucas (ainda serão quatro?). A beira, a borda, o quase, a renúncia, ou melhor, certa renúncia: você sabe muito bem, mas, como eu, que agora, por sua causa, coloco vírgulas e trocadilhos no lugar, às vezes entro em surto de ignorância (aquela que a psicanálise cura) e se atraca com um navio numa estaca: já viu um paquete amarrado numa estaca? Despropósito! Releia a “Ode marítima”[2] depressa e vá ver o Lacan.
P.S. Antes que eu assine, confesso ter sentido o mesmo medo que te assola, que nunca me contaste e que eu, como tonta, declaro ter adivinhado ou inventado, o que dá na mesma para nós cartomantes dos poetas: o de que qualquer Lacan te roube de mim… ou te roube um verbo… ou te cure a gagueira encantadora… pronto, confessei. Mary[3] saberia: não rouba não, Armando! É só impressão (nos dois sentidos)
Beijo
Ana C.
Arquivo Ana Cristina Cesar / Acervo IMS.
Trecho de Bruta aventura em versos, de Letícia Simões:
[1] N.S.: Poema de Ana Cristina Cesar incluído em Poética (Companhia das Letras, 2013).
[2] N.S.: Poema de Álvaro de Campos, heterônimo do poeta português Fernando Pessoa.
[3] N.S.: Heloisa Buarque de Hollanda.