“Quem examina pilhas de cartas antigas, a ele, um selo, que há muito tempo está fora de curso, sobre um envelope frágil, diz mais que dúzias de páginas relidas.”
“Comércio de selos”, Walter Benjamin
Ao falar de Walter Benjamin, faz-se recorrente elencar o caráter polissêmico e indomesticável de seu rigor intelectual. No entanto, tal apresentação, de cunho generalista, tende a se prender mais à temática do que à versatilidade técnica desse pensador. Recai sobre sua magnitude ensaística o fardo de esvaziar todos os demais rótulos a ele atribuídos, seja filósofo, tradutor, crítico literário, teórico ou teólogo. Tal ranqueamento eletivo, indiretamente, implica em um escanteamento seletivo.
Na crítica à obra desse pensador, observa-se em seu movimento de análise epistolar uma matéria-prima literária menor, ou ainda ocultada. No ano de 2021, os leitores de língua portuguesa tiveram a oportunidade de questionar essa ideia, dado o lançamento de uma edição bilíngue do livro ‘Deutsche Menschen – Eine Folge von Briefen’, originalmente publicado pela editora suíça Vita Nova, em 1936. Agora, em território e idioma nacional, graças à Editora Nave. Daniel Martineschen, professor do Departamento de Línguas e Literaturas Estrangeiras da UFSC, em uma astuta tradução intitula o livro “Gente alemã – Uma série de cartas”, que laureia o anônimo de sobrenome arquegermânico Detlef Holz – pseudônimo de Walter Benjamin – como organizador e prévio comentador de cada uma das 27 cartas incluídas na seleção. Datadas de 1783 a 1883, em um clássico movimento benjaminiano, esse conjunto de correspondências intenta traduzir questões engendradas nos séculos passados para encenar problemas futuros, como argumenta o posfácio da edição brasileira de Susana Scramim.
As cartas reunidas na obra de 1936, foram, inicialmente, agrupadas e divulgadas de forma periódica no jornal Frankfurter Zeitung, entre 1931 e 1932, e encomendadas pelo seu diretor editorial Siegfried Kracauer. Essa primeira versão, talvez por normas editoriais, não incluía o nome de Walter Benjamin em sua divulgação. Já em 1936, devido à ascensão do Partido Nacional Socialista Alemão, com Benjamin em exílio na Suíça, Karl Thieme possibilita a republicação dessa antologia, agora, em formato de livro, porém, ainda sem dar voz ao autor, mas a seu pseudônimo.
Com uma maior fruição estética de seu material, a começar pelos dizeres, em grafismo gótico, na capa: ‘De honra sem fama/ De grandeza sem brilho/ De dignidade sem recompensa’, já é acrescida uma pista das personalidades que serão abarcadas nesse conjunto.
Sem ser panfletário, dada a calamidade censuradora do momento, a obra replica uma Alemanha que Benjamin sonhou, por intermédio de cartas cujas temáticas rememoram suas construções teóricas. Em tempos de perigo, o pensador vislumbrou uma ampla difusão da obra para o público alemão, em um processo de repensar a Alemanha fundamentalista-fascista que o cercava, na contramão do tom nacionalista vigente. Mesmo com toda cautela, o aguçado faro cultural nazista notou, nas entrelinhas da ironia benjaminiana, uma capacidade reflexiva da mobilização da técnica e o seu potencial viés antifascista. Assim, logo em 1938, o livro cai nas malhas da censura alemã, sendo incluído no índex nazista.
gente/povo/deutsche/volk
O exercício antológico das correspondências expõe a simbiose de outras duas facetas presentes na biografia de Walter Benjamin. Trata-se do colecionismo material do filósofo, que acumulava desde notáveis obras de artes do expressionismo alemão até pequenos brinquedos infantis, retalhos, papéis avulsos, adornos residenciais e cartas sem destinatários. De cada um dos objetos foi capaz de extrair específicas figurações de seu tempo, a título de exemplo, ele o faz ao tratar de um, tido como simples, Comércio de Selos. Em suas palavras, diz que um mero grupo de “selos de sobretaxa são os espíritos sob os selos. Não se alternam. A mudança dos monarcas e formas de governo passa por eles como por espíritos, sem deixar rastros”. Destrinchar o papel da linguagem através do perecimento de selos postais frente ao tempo emplaca um exercício que encarece o repertório benjaminiano, de maneira que esse autor, como alega Hannah Arendt, é capaz de pensar poeticamente, sem ser poeta, os melindres interpretativos do cotidiano.
Outra faceta benjaminiana aqui evocada refere-se ao caráter frondoso de seus escritos epístolas ao modo pelo qual muito de sua produção intelectual foi germinada, sobrevivendo à calamidade de suas condições materiais, através deles. Os frutos filosóficos de suas correspondências estão expostos em célebres e contínuas cartas, como as com Theodor Adorno e Gershom Scholem, que perpassam, registram e ponderam os memoráveis feitos teóricos de Walter Benjamin, desde sua entrada na academia alemã, com O conceito de crítica de arte no romantismo alemão, sua frustração com ela aqui em A origem do drama trágico alemão e sua penúria ao se autoproclamar um “intelectual outsider” – principalmente exposta em seu projeto inconcluso das Passagens. O movimento de explorar o caráter circulatório das ideias, neste caso fundamentalmente intermediadas pelo gênero epistolar, permite que sejam figuradas quais seriam as limitações na tentativa de compreender a história intelectual, que se pretende modulada em voz unívoca e de vício individuada, sem o devido auxílio das correspondências.
Susan Sontag, em seu célebre ensaio Sob o signo de Saturno, alega que “Benjamin se projetou em todos os seus principais temas, e neles projetava seu temperamento, que determinava sua escolha”.2 Partindo desse diagnóstico, pode-se averiguar, em Gente alemã, uma reificação do rigor intelectual atrelado às emergentes convicções políticas no conjunto da obra de Walter Benjamin. Sendo assim, atribui-se à razão dessa coletânea de cartas um exercício de compreender o intelectual como aquele que constrói um espaço imagético resistente, elucidando suas intenções de postular uma contranarrativa.
conteúdo e personagens
Ao lançar luz sobre essas correspondências, pretende-se imaginar um outro presente possível através de um mesmo passado, destrinchando uma quintessência alemã nos meados dos séculos XVIII e XIX. Os destinatários e os remetentes se distribuem entre célebres filósofos, pensadores e cientistas desse período, como Kant, Nietzsche, Schlegel, os Irmãos Grimm e a fulcral figura de Goethe, mas também engloba figuras menos conhecidas, como profissionais liberais, discretos membros da burguesia local e até mesmo um completo anônimo. A polifonia dessas 27 vozes muito se deve ao fato de a antologia não se pretender como uma forma de prestar homenagem a um suposto panteão de heróis da língua alemã, mas sim com o propósito de expor certo brilho de uma Alemanha encoberta, secreta e misteriosa, que foi sistematicamente ofuscada pelos alicerces que precederam a ascensão do nazifascismo no continente europeu. De forma retrospectiva, é preciso ponderar o fato de que teorias de viés universalista não estavam em voga no lugar-comum daquele contexto. Assim, esse projeto epistolar pode ser observado como um livro-utopia, principalmente ao pensar essa gente alemã não como um conceito fechado, mas de modo a evocar uma projeção estética da criação de um povo, junto às contingências do ato de modular uma tradição.
Ao perceber um tensionamento do desencantar do mundo, Walter Benjamin realiza mais um esforço em prol de um ideal humanista, de modo que essa obra coletiva cede voz a um importante tom do republicanismo burguês mediado por uma honestidade epistolar. Em seu conteúdo, percebe-se uma tentativa de preservar as melhores tradições da burguesia iluminista e os classicismos de moderação das relações humanas, dando ênfase às emoções circunscritas nas correspondências.
Nesse projeto, o caráter afetivo emoldura uma corrente emocional comunicada pelas grafias da intimidade. O livro começa com uma carta que expressa o luto, em que Karl Friedrich Zelter se vê desolado ao enunciar a morte de Goethe ao chanceler Von Muller, realizando uma profunda confissão enlutada, na qual alega que até mesmo seu sofrimento é visto como indigno de direito público. Do outro lado, a carta que fecha o livro expõe uma cisão da amizade entre Schlegel e Schleiermacher, onde o primeiro se despede com um lamento conformado e uma ordem, em que pontua: “E sem o brilho desta esperança me faltaria a coragem para dizer esse adeus. não respondas”. Cabe destacar que essas duas cartas fogem da cronologia do restante, de modo a flutuar no tempo e tonalizar as que se encontram entre elas, sendo a primeira carta de 1832 e a última de 1799. Tal expressão sentimental, que, aqui, unicamente se atém ao ponto de vista do remetente, dita certo tom de alteridade nessa coleção de cartas multitonais.
O miolo do livro se constrói voltado a temas já recorrentes em outros trabalhos de Benjamin e, em certa medida, apresenta até mesmo uma nuance autobiográfica. Exemplo disso pode ser visto na correspondência do naturalista Georg Forster a sua esposa, em 1793, quando estava num exílio em Paris como representante da delegação de Mainz, sem esperança de regresso. Além das implicações particulares que sofria ao bandeirar uma causa, na carta, ele relata o terror particular que se avizinhava de seus opositores políticos. Esse espírito de liberdade revolucionária se derramou nos próprios receios que Benjamin experienciou em sua indigência parisiense entre 1933 e 1936. Assim como as rememorações de Friedrich Hölderlin sobre suas inquietas viagens ao exterior, e como Clemens Brentano sobre sua melancólica solidão, as íntimas correspondências dialogam diretamente com o que Benjamin, na Paris do século XX, sentiu e descreveu profundamente, suscitando um sentimento de vida difusa e indeterminada devido aos seus laços nostalgicamente patrióticos. A raiz de muitos desses sentimentos pode ser revisitada em suas crônicas da infância em Berlim, que não por acaso foi de escrita contemporânea, na primeira metade dos anos 30, ao projeto antológico aqui explorado.
Benjamin particularmente se detém em uma carta cujos remetente e destinatário são, respectivamente, o polímata Johann Von Goethe e Moritz Seebeck, filho do físico Thomas Seebeck. A motivação dessa carta é uma resposta à notícia da morte do cientista alemão, amigo de Goethe o qual o tempo distanciou, e que, no entanto, como exposto no relato enlutado, nunca perderá a admiração, sobretudo quanto às doutas convergências que tiveram no que diz respeito às Doutrinas das cores. Nesse caso, o antologista se debruça sobre a correspondência, tanto pela sua matéria textual quanto pelo caráter histórico. Pela data pode-se observar que se trata de uma das últimas correspondências realizadas por Goethe, consequentemente, um de seus derradeiros escritos. A literatura goethiana tardia foi um tema amplamente explorado por Georg Gervinus, influenciado por esse debate, Benjamin busca explorar um caráter léxico-semântico da correspondência, recortantando certas frases empregadas na comunicação, com finalidade de revelar a idiossincrasia da velhice de um dos maiores nomes da língua alemã. Descontraindo os entraves gramaticais, os comentários permitem enxergar no ato do pensar uma complexidade que ultrapassa os limites comunicacionais. De modo que seja extrapolada a expressão na primeira pessoa, é posto em campo o papel epistolar do sentimento do remetente, significando a correspondência como uma movimentação de si, que faz reduzir as contingências da linguagem através de uma sobriedade interpretativa.
estabilidade burguesa
A centralidade de Goethe nesse projeto está diretamente atrelada ao elogio que Benjamin realiza, indiretamente, à manutenção de tradições que consolidaram uma estabilidade burguesa. No estudo sobre o barroco alemão, o valor alegórico a despeito da germanidade é recuperado, valor esse que encena contra uma ideia de absoluta clareza, sendo a análise do drama trágico no período barroco uma exposição da importância das alegorias, principalmente as retratadas em imagens que se enfileiram uma sobre a outra sem uma pretensão de verdade. Partindo dessa dupla pretensão, a razão antológica da coletânea aparenta cumprir seus propósitos através de uma possibilidade comunicativa mediada pela figura matizante do espírito intelectual de Goethe, em que as dissonâncias entre a linguagem dos personagens – que, aqui, falam e recebem – se mostram críticas ao papel restritivo da linguagem como unicamente comunicativa, mostrando-se, no ato de ‘dizer o outro’, um questionamento à historiografia oficial que se mostra em constante vedação.
Para além de teorizações sobre a linguagem, a coletânea serve de apoio a uma atualização, ou espelhamento, de outros trabalhos do filósofo, como a filosofia da natureza, o memorialismo e as críticas da razão científica e de seu progresso. Gente alemã apresenta uma versatilidade técnica de exercitar o mosaico de citações, com colagens e montagens agora em formato de cartas, organizadas de forma gamificada que frutificam um sentido de uma totalidade, a qual por sua vez mostrará a razão da particularidade de cada coloração.
alegorias e mosaicos
“Citações em meu trabalho são como salteadores no caminho, que irrompem armados e roubam ao passeante a convicção.” No caráter metalinguístico dessa citação, do fragmento “Quinquilharias” do livro Rua de Mão Única, Benjamin explora os lampejos que engendram suas citações, ao isolar as avulsas frases que cita, neutraliza-as à sua própria verdade indizível. O ato de agrupar cartas, apesar de ser, até o momento, Gente alemã a única conhecida na obra de Benjamin, é uma prática já elogiada por ele, como o fez na resenha do livro de Rudolf Borchardt em 1927, que, embora utilize o mesmo movimento, expõe uma temática oposta quanto à exaltação nacionalista da Alemanha. Sendo assim, em último instante, cabe pessoalizar a questão e pensar: qual foi a verdade indizível que um judeu alemão, em pleno píncaro do antissemitismo nazista, foi capaz de repensar ao explorar o processo formativo do Estado alemão por intermédio de correspondências? Pode ser que uma germanidade movida por um fator de estrato cultural comum tenha permitido que Benjamin lançasse os olhos sobre resquícios de um iluminismo visionário, para, enfim, construir esse projeto epistolar em forma de mosaico.
Apesar de um aparente otimismo teórico, a ingenuidade pode ser descartada. Ao enviar esse livro para seus conhecidos, como Dora Benjamin e Gershom Scholem, Walter Benjamin, sabendo de seu caráter utópico, na dedicatória descrevia que o seu projeto pretendia ser como uma arca que enfrentaria o dilúvio nazifascista em vigência. Embora ansiasse em edificar um refúgio para esse dilúvio em curso, os comentários de nosso filósofo lanternam o passado enquanto falava no escuro. Talvez a arca que enfrentou a tempestade nazista, na realidade, não tenha conseguido evitar o navio transatlântico que a ideologia fora capaz de arquitetar. Talvez a chuva seja mais longa do que esperávamos. Talvez, como a mala perdida de Benjamin em Portbou, a carta que nos faltava tenha sido extraviada.