O início na Áustria

A história de Otto Maria Carpeaux no Brasil começa em setembro de 1939, após uma longa fuga da fúria hitlerista que avançava na Europa. Com a anexação da Áustria, em 1938, a situação dos judeus tornou-se cada vez mais insustentável, de modo que Carpeaux e sua esposa, a cantora lírica Helene Silberherz, tiveram de deixar o país às pressas para sobreviver. Após uma breve passagem por Roma, o casal se instalou na Antuérpia, onde Carpeaux publicou o livro Dos Habsburgos a Hitler, em que descreve a destruição da Áustria pelos nazistas. Meses depois, com a iminência da invasão da Bélgica pelo exército alemão, eles abandonaram definitivamente a Europa e partiram para um exílio cego rumo ao Brasil — nos dias em que atravessavam o Atlântico, as tropas do Terceiro Reich invadiram a Polônia, dando início à Segunda Guerra Mundial.

Nesta mesma época, havia no Brasil uma associação de beneditinos que, sob a proteção do Vaticano, recebia os emigrados europeus que fugiam da perseguição hitlerista. Foi por meio dessa organização, com a ajuda do papa Pio XII, que Carpeaux e sua esposa conseguiram chegar seguros ao Rio de Janeiro para obter o visto de “católicos não-arianos” (semitas convertidos ao catolicismo), apesar das leis brasileiras que estavam em voga e que proibiam a concessão de vistos para pessoas de origem judaica.

Até então, o escritor não sabia quase nada sobre o Brasil. Na Europa, teve apenas uma vaga noção a respeito de dois brasileiros: o compositor Heitor Villa-Lobos, de quem ouvira algumas composições em Paris, e o pensador católico Alceu Amoroso Lima, que seria a primeira pessoa com quem faria contato após desembarcar no Rio de Janeiro. Hoje, a correspondência entre os dois preenche uma lacuna fundamental da biografia do emigrado e nos ajuda a mapear não só os seus primeiros passos após chegar ao Brasil, como também a própria situação dos refugiados judaicos no país.

As atividades pregressas de Carpeaux na Europa, sempre ligadas a uma dedicada atuação pela causa religiosa enquanto membro da Ação Católica, contribuíram para que fosse possível a sua fuga para o Brasil, como mostram suas cartas. Do mesmo modo, a sua profunda ligação com o pensamento e as instituições católicas explica por que já lhe era familiar o nome de Amoroso Lima. Em um depoimento que abre o livro Alceu Amoroso Lima, Carpeaux narra brevemente este episódio, em que manifesta suas primeiras impressões diante do pensador brasileiro:

Procurei-o [Alceu] na sede do então Centro Dom Vital, naquele velho casarão da Praça XV que hoje abriga a Faculdade Cândido Mendes. Quando me deram esse endereço, ouvi com simpatia o nome do corajoso bispo contestatário que se tinha revoltado contra um regime injusto, contra um governo tirânico. Por outro lado, sabia que iria encontrar um líder católico, o que então significava um homem da Direita. Subindo no elevador estreito e antiquado, eu esperava encontrar um daqueles líderes católicos do mundo de então, homens velhos, meio alquebrados, cheios de ânsia, dir-se-ia medo, preocupados com a ascensão vertiginosa dos movimentos fascistas que eles próprios tinham inicialmente ajudado. Mas, saindo do elevador e entrando numa pequena sala de recepção, foi total minha surpresa.

Deste encontro nasceu uma correspondência que nos permite reconstituir os primeiros passos de Carpeaux no Brasil, mas não só: nasceu também uma amizade que perdurou por décadas, alimentada por recíproca admiração. É bastante significativo que o último livro escrito por Carpeaux, intitulado Alceu Amoroso Lima, tenha sido uma biografia intelectual do amigo.

Um contato em português: a primeira carta


Nesta ocasião, Carpeaux ainda não dominava a língua portuguesa, de modo que as suas primeiras cartas foram redigidas em francês. Na primeira delas, enviada a Alceu a partir de um endereço no Rio de Janeiro e datada de 14 de outubro de 1939, o austríaco conta que o procurou por recomendação do Núncio Apostólico, que foi também quem interveio pessoalmente junto a Getúlio Vargas para que ele e sua esposa obtivessem um visto de permanência. Carpeaux almejava um emprego como escritor em alguma publicação católica brasileira, atividade da qual se ocupava na Europa.

Para se apresentar a Amoroso Lima, o anexou à carta um curriculum vitae enumerando as atividades que exerceu, sobretudo aquelas ligadas à cultura católica, além de ostentar um percurso acadêmico digno do espírito Renascentista que em poucos anos seria conhecido entre os leitores brasileiros.
Talvez por trauma, o escritor raramente falava a respeito de seu passado em Viena. Sempre avesso às perguntas pessoais, em entrevistas costumava dizer que aquele período de sua vida estava superado. Porém, naquele momento de sua chegada, impelido pela necessidade de se estabelecer financeiramente, Carpeaux – que na ocasião ainda assinava Karpfen – forneceu a Amoroso Lima algumas informações preciosas sobre sua vida. A sua formação universitária sugeria tratar-se de um polímata com conhecimentos que não se limitavam às ciências humanas e sociais, mas que também tocavam as ciências exatas. Doutor em Letras e também em Química pela Universidade de Viena, a sua passagem como assistente em laboratórios foi breve, como ele mesmo descreveu:

Estudei na Universidade de Viena e me tornei doutor em letras em 1925. Além disso, sou diplomado pela Universidade de Viena como doutor em química, e, entre 1925 e 1926, fui assistente nos laboratórios químicos desta universidade, mas jamais exerci esta profissão na prática, pois meus estudos filosóficos e sociológicos me fizeram abraçar a profissão de escritor e de jornalista. (14/out/39)

Na mesma carta, ele narra a sua passagem pelo jornalismo. Como redator e correspondente, atuou em algumas das publicações católicas mais importantes da Europa, como o Reichpost e a publicação bimensal da Ação Católica da Áustria. Na vida pública, chegou a gozar da confiança de dois chanceleres austríacos, Dollfuss e Schuschnigg, sobre cujas relações raramente voltaria a comentar:

Durante anos, fui correspondente de jornais católicos estrangeiros em Viena; e, mais tarde, redator do “Reichpost”, o maior jornal católico da Áustria. Escrevi, durante um longo período, artigos de fundo político e econômico para o “Reichpost”. Ademais, fui redator-chefe do “Berichte zur Kultur – und Zeitgeschichte”, o bimensal oficial da Ação Católica da Áustria. (…) Minha atividade como jornalista possibilitou também criar relações políticas. Como membro da Ação Católica, lutei por uma política católica para a Áustria e gozei da confiança pessoal de dois infelizes chanceleres: Dollfuss e Schuschnigg.

Poucos dias após a Anschluss, fugi para Roma e depois me estabeleci na Bélgica, onde meus trabalhos jornalísticos foram muito apreciados pela imprensa católica e onde tive a ocasião de publicar um livro em língua holandesa. Contudo, os problemas perpétuos da Europa me determinaram a buscar uma nova existência na América do Sul.
Por intercessão dos meus amigos romanos, o Santo Padre decidiu, no dia 3 de junho deste ano, intervir a meu favor junto ao Sr. Presidente Vargas, e foi dessa maneira que imediatamente obtive os vistos para permanência no Brasil.

O escritor recorreu a Alceu Amoroso Lima não apenas por idealismo católico, mas também por sobrevivência. No entanto, não conseguiu, de imediato, se estabelecer no Rio de Janeiro, onde passou dias de penúria. As buscas por refúgio o levaram para São Paulo e, posteriormente, ao norte do Paraná, para onde possivelmente foi encaminhado pelas entidades católicas a que recorreu.

Sentir medo no Sul: a segunda carta

No início da década de 1930, aquela região passou a receber um grande número de refugiados europeus. As dívidas que o Brasil tinha com a Inglaterra fizeram com que o norte paranaense pertencesse a bancos ingleses, que viriam a fundar a cidade de Rolândia, cuja ocupação se efetivou com a chegada de imigrantes alemães. Não obstante, as coisas não aconteceram de forma tão harmoniosa.

Em 8 de dezembro de 1939, já vivendo em Rolândia, Carpeaux fez um segundo contato com Amoroso Lima. Muito diferente da primeira carta, em que se apresentava de maneira formal e demonstrava admiração pelo interlocutor, a segunda é carregada de ironia e mágoa. A primeira decepção surge já em sua primeira linha: a ausência de resposta. Além de sentir-se preterido por Amoroso Lima, o escritor protestou também contra as péssimas condições em que se encontrava: “aqui eu vivo em um casebre de madeira […] e por pouco não passo fome”. Sentindo-se desprezado pelo movimento católico brasileiro como um todo, Carpeaux via em Amoroso Lima um porta-voz a quem poderia desferir o seu sarcasmo:

Permita-me felicitá-lo. Meus parabéns, pois o movimento católico do Brasil é tão rico de colaboradores que dispensa a colaboração de homens que gozam da estima de especialistas na Europa; meus parabéns, pois a distribuição de forças espirituais no Brasil é tão bem organizada que um escritor, digno da estima de três papas, pode se ocupar do cultivo de café no Paraná; meus parabéns, pois a caridade católica no Brasil é quase tão fraca e incerta quanto na Europa, bom presságio para o futuro “Continente Católico”. (08/dez/39)

Contudo, a demonstração de arrogância, como que para reafirmar o seu próprio valor ignorado por Amoroso Lima, pode esconder uma motivação para além do orgulho ferido, isto é, o medo. No fim da década de 1930, Rolândia reunia uma mistura étnica que incluía não apenas colonos judeus, como também japoneses, húngaros, suíços, austríacos e alemães, muitos dos quais simpatizantes do Terceiro Reich. Assim, já traumatizado pela violência a que havia assistido em Viena, é bastante provável que Carpeaux e sua esposa estivessem aterrorizados diante da possibilidade de reencontrar no Brasil o terror do qual fugiram ao deixar a Europa.

Minhas esperanças: a terceira carta

A terceira carta enviada a Alceu Amoroso Lima, datada de 19 de dezembro de 1939, é igualmente importante para que se possa compreender o tom adotado por Carpeaux, assim como a angústia para deixar o Paraná. Também sem ter recebido uma resposta para o contato anterior, o desespero do austríaco por ser ouvido é manifesto já na primeira linha de seu texto: “Leia esta carta, eu vos imploro pela misericórdia de Cristo!”.

Ao contrário da carta anterior, esta não tem um caráter irônico ou enfurecido; seu teor é de súplica, mas também de desculpas: “Preciso implorar o seu perdão por um erro grave. Por favor, me escute mais uma vez, eu lhe peço pela misericórdia de Cristo”. Segundo Carpeaux, havia outros problemas graves que motivaram o seu apelo, como a presença do que chamou de “loucos” e “patifes” entre eles:

Foi por causa do encalhe de minhas esperanças que fui forçado a ir para o interior do Paraná. Mal posso descrever o que vimos. Caímos nas mãos de patifes e loucos, e foi com dificuldade que escapamos de um casebre de madeira no meio da floresta virgem. (19/dez/39)

Os registros da breve passagem do escritor pelo Paraná são anteriores à sua estreia nas letras brasileiras e não dizem respeito à sua formação de crítico. Apesar disso, lançam luz sobre seus desejos ao desembarcar no Novo Mundo e ajudam a compor um período pouco conhecido de sua biografia. Felizmente, essa correspondência segue conservada no acervo do escritor Alceu Amoroso Lima e está disponível para consulta na página [http://alceuamorosolima.com.br/].

A tormenta foi breve. Após sair do Paraná, o escritor finalmente conseguiu se estabelecer no Rio de Janeiro, onde foi apresentado ao público do jornal Correio da Manhã por Álvaro Lins, considerado um dos maiores críticos literários do país, e estreou com um texto sobre Jacob Burckhardt. Os seus primeiros ensaios despertaram de imediato a atenção dos leitores, pois já traziam aquilo que passaria a ser a sua marca: a análise e a apresentação de autores e obras fundamentais até então totalmente desconhecidos entre a intelectualidade brasileira, como Franz Kafka, Erich Auerbach, Robert Musil e tantos outros. Não demorou para começar a escrever em português. Daí por diante, o ex-austríaco, cada vez mais brasileiro, passaria a assinar os seus textos não mais como Karpfen, mas como Carpeaux.