O autor que escrevia em baianês, palavras dele, era um homem epistolar — epistolar, atencioso e apaixonado. Acrescente às missivas de 1948 uma certa tensão pela viagem às pressas, a incerteza do futuro além-mar e a angústia por deixar sua amada e seguir sozinho para o exílio europeu após a cassação de seu mandato como deputado pelo PCB. Não há dúvidas: a cada nova carta, a cada nova declaração de amor, eu e você, antes meros leitores, nos tornamos mensageiros de Toda a saudade do mundo — a correspondência de Jorge Amado e Zélia Gattai.

Zé querida: começo a te escrever esta carta no segundo dia de viagem. Quero te dizer, primeiro, das saudades que sinto de ti e de João Neto, o risonho. Não podes imaginar a angústia que me assaltou quando o navio se afastava do cais e eu vi a imagem de vocês desaparecer lentamente. Mas eu a trago no coração e não a esqueço um único momento.
(Navio Formose, 31 de janeiro de 1948)

O livro organizado por João Jorge Amado — o filho risonho da primeira carta — mostra a intimidade e a rotina de um dos casais mais queridos da literatura brasileira. A maioria das mensagens foi escrita por Jorge Amado; já as respostas de Zélia Gattai, igualmente apaixonada, foram extraviadas por conta das andanças pela Europa.

Acontece que dona Zélia, grande contadora de histórias, tinha uma capacidade surpreendente de guardar lembranças com riqueza de detalhes — já madura, narrou boa parte da vida em vários livros de memórias. Foi em Senhora dona do baile que a escritora registrou a euforia ao receber as primeiras notícias:

Enquanto aguardava a hora de deixar o Brasil, as cartas de Jorge me ajudaram a suportar a solidão e as saudades. Às vezes elas tardavam, e eu, feito louca, ia à rua ao encontro do carteiro; às vezes chegavam duas e três ao mesmo tempo.

Quanto mais a saudade crescia, mais Jorge Amado escrevia novas cartas cheias de mimos e inquietações — causos a bordo do navio, preocupação com o sustento da família, alerta sobre a escassez de comida no pós-guerra e planos para o reencontro:

Devo te dizer da alegria que me deu ontem teu telegrama? Eu o recebi às 5 e meia da tarde e o reli umas 40 vezes. (…) Segundo a canção de Caymmi hoje, 2 de fevereiro, é dia de festa no mar. Mas não aqui no Formose. Se eu não tivesse trazido tão poucos sabonetes jogaria hoje um no mar em honra de Janaina.
(Navio Formose, 2 de fevereiro de 1948)

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Nunca mais me acostumaria a viver sem ti e não tenho graça longe de ti. Falo em ti o tempo todo e penso, quando vejo uma coisa, como gostarias de vê-la e como seria bom ter-te ao meu lado.
(Paris, 20 de fevereiro de 1948)

Vou te enviar uma relação de coisas que deves trazer (traz principalmente leite em pó (para João), café, feijão, arroz e chocolate, porque comida aqui é um problema seríssimo e a fome é dura) (…).
Não sei mais como te esperar. Sonho contigo todas as noites e é aquele horror. Creio que já nem sei funcionar, mas creio também que te virarei pelo avesso quando chegares. (…) Querida minha, negra minha, minha mulherzinha, sonho contigo todos os dias. Vai ser uma lua de mel quando chegares.
(Paris, 17 de março de 1948)

Jorge Amado e Zélia Gattai realmente se gostavam, contavam as horas para o reencontro — coisa de início de relacionamento, pero no mucho. Aqui vale um parêntese: eles já estavam juntos há mais de dois anos e o encantamento era o mesmo dos tempos de flerte velado antes do primeiro beijo finalmente acontecer — e que beijo. Um contido tesão rolando entre nós dois desde o início, escravizado, reprimido a duras penas, rompeu as amarras, conquistou a alforria.

A revelação, e outras tantas sobre aqueles dias de amor e luta, é narrada por Zélia nos livros Vacina de sapo e outras lembranças e Um chapéu para viagem. Jorge também conta em seu livro de memórias, Navegação de cabotagem, que cortou um dobrado para conquistar a jovem: Não desisti, não tirei da cabeça, estava me roendo de paixão, fiz o que o diabo duvida, não deu outra, em julho Zélia veio morar comigo.

Eles se conheceram em janeiro de 1945 no Primeiro Congresso Brasileiro de Escritores, em São Paulo. Na verdade, apenas trocaram algumas palavras numa festa oferecida aos participantes na boate Bambu. Depois de se esbarrarem na pista de dança, Jorge foi atrás dela. A história fica muito mais saborosa nas palavras de Zélia:

Mais tarde foi à nossa mesa: “Me apresente à moça, Barão!” [Aparício Torelly, Barão de Itararé], os olhos fixos em mim. Eu que pensara dizer-lhe, na primeira oportunidade que tivesse, que o admirava muito, que era sua velha leitora, não lhe disse nada disto. Nosso diálogo foi rápido:

— Eu já não te conheço? — perguntou-me. — Eu já não te vi no Congresso? Você esteve lá, não esteve?
— Se me viu foi de longe… — respondi-lhe; e foi tudo.

Admirei-me: por que desejara me conhecer? Teria mesmo notado minha presença no Congresso, ou estava apenas puxando conversa?

E ficou por isso mesmo. A aproximação só aconteceu quando trabalharam no movimento pela anistia de presos políticos. Zélia, que já era militante, apareceu no comitê sabendo que o escritor atuava por lá; Jorge não pensou duas vezes quando avistou a moça: Você vai trabalhar comigo no setor de divulgação.

Dali em diante, Jorge e Zélia estavam sempre juntos em comícios, passeatas, festas e todo o tipo de atividade que ele arrumava para ter a voluntária por perto. Contudo, sem avançar o sinal, como lembra a escritora: nos inúmeros percursos que fazíamos de automóvel, nas idas e vindas dos comícios, sentados sempre um ao lado do outro, Jorge jamais esboçara um gesto, um movimento atrevido. Não encostava ‘sem querer’ a perna.

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O envolvimento, até então platônico, ganhou ares de declaração de amor no dia em que Zélia Gattai estava completando 29 anos. Jorge Amado, então com 33, perguntou se a aniversariante lia suas colunas na Folha da Manhã — claro que ela lia —, então recomendou: Pois não deixe de ler a de amanhã. A crônica que Zélia devorou no dia seguinte era pra lá de romântica, mas ainda não citava nomes: Eu te darei um pente pra te pentear, colar para teus ombros enfeitar, rede pra te embalar, o céu e o mar eu vou te dar (…).

Dias depois, mais uma surpresa: Eu não sei cantar, pedi a Caymmi que cante por mim. Eles estavam numa festa com participantes do comitê quando Jorge cochichou alguma coisa para o amigo no intervalo do show. Dorival lançou um olhar maroto para Zélia e logo soltou a voz: Acontece que eu sou baiano, acontece que ela não é. Tem um requebrado pro lado, minha Nossa Senhora, meu Senhor São José.

Paulista, ela era linda e corajosa, filha de imigrantes italianos “anarquistas, graças a Deus”. Baiano, ele era garboso e influente, sempre cercado de moças interessantes, o que deixava Zélia com o pé atrás. Os dois vinham de casamentos anteriores numa época em que não existia divórcio — tudo era mais difícil para a mulher. Mesmo assim, Jorge não desistiu: ao conhecer Zélia, arriei bandeira e pedi paz.

Logo, a visita de um poeta marcaria um dos momentos mais bonitos daqueles dias. Na volta de um jantar em homenagem a Pablo Neruda — convidado especial do comício no Pacaembu para saudar Luís Carlos Prestes —, Jorge pediu para o motorista parar o táxi em frente ao Theatro Municipal e desceu em direção às floristas. No banco de trás, Neruda presenciou uma cena que jamais esqueceria: La lluvia de claveles rojos en la madrugada. Jorge Amado cobriu Zélia Gattai com uma chuva de cravos orvalhados.

Cerca de dois anos e meio depois do banho de flores, Jorge embarcou no navio Formose levando com ele toda a saudade do mundo. Para driblar a ausência de Zélia e do filho, cartas e mais cartas. Alguns trechos das missivas — que a essa altura já escancaravam o futuro irremediável daquele amor — tinham um tom peculiar capaz de arrancar boas risadas de destinatário e emissor:

Querida minha, minha negra saudosa, meu amor mais lindo do mundo, novamente estou há uma semana sem cartas tuas, sem saber se estás no Rio ou em São Paulo (…). Nos fins de abril estaremos juntos e isso para mim é a vida. (…) Amor, tenho um mundo de saudades e de ternura. Apenas creio que me encontrarás inteiramente brocha, pois já perdi o hábito.
(Paris, 23 de março de 1948)

Zélia e o bebê João Jorge chegaram em abril; Paloma, segunda filha do casal, nasceu durante o exílio europeu. A partir dali, a correspondência diminuiu: sempre juntos, rodavam o mundo e viviam rodeados de amigos. Vez ou outra, Jorge Amado viajava sozinho; o envio de cartas, agora com recados para as crianças, voltava a acontecer:

Filhote, teu pai vai num avião enorme, sete horas e trinta minutos sobre o oceano Atlântico e vai com muitas saudades do João. Faz um favor ao Paiote: dê um beijo na mãe, outro na Palomita, um no avô, um na avó, um na Janaína, um abraço no James e outro beijo na mãe. E um grandão para o João. Do pai.
(Avião Douglas DC-6B, 3 de dezembro de 1952)

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Jorge Amado e Zélia Gattai construíram uma vida inteira juntos. Contrariando o agouro de intelectuais da época, a primeira faísca nunca se apagou. Foram 56 anos de casamento sempre às voltas com as lembranças do primeiro beijo. Neste vídeo do acervo da Fundação Casa de Jorge Amado, Zélia narra como tudo aconteceu:

https://www.youtube.com/watch?v=xnDToJX3kA0


Em 1962, a saudade voltou a dar as caras, dessa vez por um motivo especial. O escritor ganhou um bom dinheiro com a venda dos direitos autorais de Gabriela, cravo e canela para o cinema e comprou o que se tornaria a famosa casa do Rio Vermelho — uma casa sincera, como ouviram dizer. Antes disso, muita água rolou durante o longo período de reforma e construção. Com um pé ali e outro acolá, o casal ia administrando a rotina: Zélia tocava a vida com os filhos no Rio de Janeiro; Jorge acompanhava as obras em Salvador. A correspondência, velha conhecida, dava conta das notícias:

Tudo começado, ontem era uma poeirama de fazer medo. Foram feitos os buracos na parte do fundo da casa para correr o ar e refrescar. (…) Carybé está aprontando os desenhos para a grade. (…) nossa floresta cresce contra vento e sol. O jardineiro é realmente bom e trabalhador. (…) Daqui a dez anos, já mais velhotes, os filhos pelo mundo, gozaremos os dois a sombra das árvores agora plantadas.
(Salvador, 25 de outubro de 1962)

Agora, a última novidade: vou comprar o terreno vizinho ao nosso. (…) E vou comprar o terreno para ti, em teu nome, é meu presente de Natal. Assim fica isso aqui meu e teu. (…) Nem vou repetir que estou com saudades tuas. Tu o sabes e só por isso vou ao Rio. Beijos, minha querida, muitos e saudosos. Sinto tua falta cada vez mais.
(Salvador, 5 de novembro de 1962)

Os tempos eram bicudos e a família acabou se mudando para a casa ainda em obras, no final de 1963, mas volta e meia Zélia passava um período no Rio de Janeiro. Mesmo à distância, acompanhava o nascimento de uma das personagens mais marcantes de Jorge Amado: Dona Flor.

Essa senhora vai indo. As últimas duas cenas da quarta parte saíram logo, a primeira facilmente, num dia, a segunda custando-me quatro dias: também era a da chegada de Vadinho. (…) Hoje dormiremos todos fora de casa (…), pois estão pintando as portas e não há quem possa dormir com o cheiro.
(Salvador, 3 de dezembro de 1965)

A esposa, com certa fama de ciumenta, contava para os amigos: Taí uma rival que me dá gosto de ter. Era brincadeira, claro. Aliás, que baita companheira essa dona Zélia: era ela quem primeiro recebia os capítulos de todos os livros, passava a limpo os originais e acolhia as dificuldades do marido para encontrar um destino para a protagonista.

Tudo aqui em ordem. Verás pelas primeiras cenas da quarta parte que mudei o ritmo da narrativa: cenas curtas e de ação. Vamos ver o que dá. E o que fará dona Flor, que não sei ainda. (…)
Fico por aqui, meu bem (como diria Vadinho), querida minha (como diria o doutor Teodoro).
(Salvador, 6 de dezembro de 1965)

A história do desfecho de Dona Flor é divertida, vale pesquisar, mas por ora, meus amigos, também fico por aqui (como diria Jorge Amado).

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A casa do Rio Vermelho — sempre aberta para quem quisesse chegar — ficou pronta em 1967. Durante mais de 30 anos foi ponto de encontro de amigos, artistas e toda a gente da Bahia, genuína inspiração para dezenas de personagens. Em 2001, Jorge Amado partiu e suas cinzas foram depositadas junto ao banco de azulejos, à sombra da mangueira, desejo do escritor: Aqui, neste recanto de jardim, quero repousar em paz quando chegar a hora, eis o meu testamento. Sete anos depois, Zélia Gattai repousou ao seu lado.

Desde então, toda a saudade do mundo também é nossa.