Em seu famoso ensaio A arte da ficção, publicado na revista Longman’s em 1884, Henry James reclamava de certa ingenuidade do romance inglês. Em tom de provocação, ele diagnosticava na cena literária o sentimento generalizado de que “um romance é um romance, assim como um pudim é um pudim, e ponto final”. Criticava a ausência de teoria e de crítica, visando liberar o romance tanto de sua função pedagógica – herança do protestantismo – quanto da obrigação de entreter. O romance, para ele, deveria ser tratado como arte, e se ao longo do século 20 isso se tornou uma realidade incontestável, naquela época estava longe de ser óbvio.
James logo ganharia um interlocutor à altura com o “humilde protesto” que Robert Louis Stevenson publicou na mesma revista. Em sua réplica, o autor de A ilha do tesouro, implodia o argumento central de James, a saber: que a ficção deveria captar “o estranho ritmo irregular da vida” e competir com ela. Para Stevenson, que insistia no caráter artificial da literatura, havia uma diferença incomensurável entre arte e vida: “nenhuma arte, para usar a ousada frase do Sr. James, pode competir com a vida com sucesso, e a arte que faz isso está condenada a perecer montibus aviis.”
A ideia da literatura como artifício foi explorada à exaustão por James nos prefácios que escreveu para a luxuosa edição que a Scribner fez de suas obras no século 20. Apenas cinco anos após sua morte, essas formulações foram reunidas de modo a compor uma espécie de manual da arte da ficção – por mais contraditório que isso pudesse ser com a defesa que fazia da liberdade do romancista – e se tornaram centrais para os estudos literários, sobretudo no pós-guerra.
A contribuição de Stevenson neste debate central para a constituição do romance moderno é subvalorizada. Tendo sempre flertado com gêneros populares e duvidosos para o cânone literário numa época de afirmação do romance realista e da voga do naturalismo – basta pensar na Ilha do tesouro, típico “romance de capa e espada” publicado no início dos anos 1880, ou na novela fantástica Dr. Jekyll e o Sr. Hyde(1886) –, sua obra “mais séria” ficou um pouco esquecida. A correspondência entre James e Stevenson, publicada agora pela editora Rocco com o título A aventura do estilo, revela, no entanto, um interesse compartilhado pela arte literária, debatido com verve e inteligência.
Stevenson vira no debate iniciado na Longman’s a oportunidade de expor suas ideias sobre a ficção, amparadas numa elaborada teoria, ainda que um pouco assistemática. Mas a tréplica de James foi em forma de carta, enviada em 5 de dezembro de 1884, e, ainda que Stevenson o convocasse a seguir a discussão no âmbito público, é na correspondência que o debate se arma. Pouco conhecido mesmo entre os estudiosos de literatura, o diálogo entre James e Stevenson pode soar inusitado para muitos devido à desproporção que marca a fortuna crítica dos escritores.
James ficou conhecido por sua escrita refinada e muitas vezes rebuscada. As aventuras psicológicas que dão o tom de obras como O retrato de uma senhora, do início da década de 1880, e a radicalização do drama da consciência em novelas como A fera na selva, de 1903, antecipam as experimentações modernistas. Stevenson sempre foi um escritor popular e conseguiu atingir o sucesso de público que James tanto almejava – ainda que isso o fizesse corar. A saúde frágil desde a infância, a boêmia cultivada na juventude e o casamento com Fanny Osbourne, dez anos mais velha do que ele e “morena demais” para a sensibilidade europeia, ajudaram a compor sua fama, que ganhou proporções romanescas quando decidiu se lançar a uma vida de aventuras no Pacífico Sul. Num pós-escrito à primeira carta que enviou a James, Stevenson alude a esta discrepância, mas o faz com um tom de zombaria, afeto e erudição que marca toda a correspondência:
“Como pequei contra a proporção e contra os rudimentos da cortesia, apesar de todo esforço na direção contrária! Você é de fato um leitor muito perspicaz ao adivinhar minha real intenção; e posso apenas concluir, não sem fechar os olhos e encolher os ombros, com as palavras gastas: em guarda, pois, Macduff!”
A citação do Macbeth encerra a carta, mas convida James a um duelo de ideias que só terminará dez anos mais tarde, com a morte prematura de Stevenson em Samoa. Desde sua viagem aos Estados Unidos em 1887, de onde zarpou para as ilhas do Pacífico Sul, ele nunca mais havia voltado à Europa.
Das muitas coisas que poderiam ser pinçadas das cartas, o embate entre o realismo e o maravilhoso é algo que ilumina a discussão teórica sobre o romance. Stevenson se declara um escritor “épiko com k” e um admirador dos velhos romances de aventura. James se assume um “cockney vil”, e defende suas aventuras psicológicas e reflexões oblíquas. Mas também essa oposição tem nuances. James se mostra um fã e bom conhecedor de aventuras misteriosas. Stevenson dá pitacos na fatura dos livros de James, não deixando dúvidas em relação a seu estofo estilístico. E se escreve fábulas “dignas de Alexandre Dumas”, é o próprio James quem atesta que o interlocutor é capaz de inserir nelas “uma densidade de observação com a qual o outro escritor nunca teve nada a ver”. Há cumplicidade também na opinião sobre o romance A besta humana de Zola, como mostra esta tirada de Stevenson: “Ele, sim, é uma Besta; mas não humana, e, para ser sincero, não muito interessante. ‘Doenças nervosas: a ala dos homicidas’ seria o título mais apropriado. Ah, esse jogo começa a ficar cansativo.” (carta 44). James também reprochava a empreitada naturalista de Zola – sem ter lido o livro! – por ser maçante e imperfeita (carta 43).
Assim, a correspondência entre James e Stevenson acaba por desconstruir noções rápidas sobre um e outro, ao mesmo tempo que revela algo da história do romance, de sua batalha para que fosse aceito como arte no universo de língua inglesa e de como tomou a forma que tem hoje. Se, como definiu Ian Watt, o realismo é o traço essencial do romance e tendeu a suplantar os modos não-realistas que predominavam na prosa de ficção até seu surgimento, o gênero está longe de constituir uma forma pura. Pelo contrário, o romance é afeito à mistura, a contaminações, à variedade e ao cruzamento de fronteiras – e é algo desse fluxo que acompanhamos nessa troca epistolar.