Entre 1959 e 1965, o poeta português Jorge de Sena construía o seu museu particular em terras brasileiras, onde passou a viver após colaborar numa tentativa frustrada de pôr fim à ditadura em Portugal. De Araraquara ou Assis, cidades do interior paulista em cujas universidades lecionou, revisitou, em sua memória, obras de diversos museus da Europa. Foi assim que encontrou inspiração para compôr 16 dos 27 poemas reunidos no livro que chamou de Metamorfoses, ao invés de Museu, título em que pensara inicialmente. A troca foi bem-sucedida: não só relacionava a obra ao clássico de Ovídio, de onde extraiu uma das epígrafes do livro, como definia a própria poética seniana: “Poderíamos mesmo falar da poética seniana como, essencialmente, uma poética da metamorfose: metamorfose do mundo, das imagens do mundo, metamorfose das linguagens, da linguagem”, diria o crítico português Adriano Carlos.
No extenso conjunto da obra literária de Sena, Metamorfoses, publicado em 1963 e posteriormente incluído em Poesia II a partir de 1978 (com o acréscimo do poema “Dançarino de Brunei”, escrito em 1974), ocupa uma posição especial pela inovadora relação que estabelece entre a literatura e as artes plásticas, tornando complexa a noção clássica de ut pictura poesis, segundo a qual a pintura é uma poesia muda e a poesia é uma pintura que fala, como definiu Horácio. Desse conceito, surgiu a poesia ecfrástica, caracterizada por descrever uma obra de arte pictórica ou escultórica.
Modernamente, a descrição foi cedendo lugar ao comentário, à reflexão, às “meditações aplicadas”, como quis Sena, que levam à recriação: o objeto visual se metamorfoseia em poema, e, nesse movimento, se faz novamente presente (de novo e de modo novo) independentemente do tempo e do espaço em que foi criado.
Assim, a característica marcante de Metamorfoses são as imagens fotográficas de pinturas, esculturas, monumentos arquitetônicos etc. que acompanham e dialogam com os poemas da segunda seção, que dá título à obra. A ela ligam-se as seções Antemetamorfose e Post-metamorfose, seguidas de Quatro sonetos a Afrodite Anadiómena, que encerra o conjunto.
Quatorze dos vinte poemas nucleares, isto é, incluídos na segunda seção, reportam-se a peças de museus da Europa, como a “Cabecinha romana de Milreu”, do Museu Nacional de Arqueologia, em Lisboa, a múmia de “Artemidoro”, do Museu Britânico, em Londres, e o quadro “A morta”, de Rembrandt, no Museu Nacional de Arte Antiga, em Bruxelas. Esse número sobe para 16 se considerarmos os monumentos arquitetônicos, dentre eles “A nave de Alcobaça”, em Portugal, e a “Mesquita de Córdova”, na Espanha.
Sena já mostrava interesse por essa relação entre as artes desde seu terceiro livro de poesia, Pedra filosofal, de 1950. O próprio poeta explica que a série “Primitivos”, desse livro, “antecipa, a uma escala miniatural, os poemas longos sobre objetos pictóricos, escultóricos, ou afins, que constituem estas Metamorfoses”.
Da coletânea de 1963, um dos poemas mais conhecidos é “Carta a meus filhos sobre os fuzilamentos de Goya”, escrito a partir da tela O 3 de maio em Madri ou Os fuzilamentos, do espanhol Francisco de Goya. O quadro, de 1814, está exposto no Museu do Prado, em Madri, e retrata um dos momentos mais impactantes da resistência madrilenha à invasão de Napoleão Bonaparte: o fuzilamento de 44 revolucionários na colina do Príncipe Pío, na capital espanhola.
CARTA A MEUS FILHOS SOBRE OS FUZILAMENTOS DE GOYA
Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso.
É possível, porque tudo é possível, que ele seja
aquele que eu desejo para vós. Um simples mundo,
onde tudo tenha apenas a dificuldade que advém
de nada haver que não seja simples e natural.
Um mundo em que tudo seja permitido,
conforme o vosso gosto, o vosso anseio, o vosso prazer,
o vosso respeito pelos outros, o respeito dos outros por vós.
E é possível que não seja isto, nem seja sequer isto
o que vos interesse para viver. Tudo é possível,
ainda quando lutemos, como devemos lutar,
por quanto nos pareça a liberdade e a justiça,
ou mais que qualquer delas uma fiel
dedicação à honra de estar vivo.
Um dia sabereis que mais que a humanidade
não tem conta o número dos que pensaram assim,
amaram o seu semelhante no que ele tinha de único,
de insólito, de livre, de diferente,
e foram sacrificados, torturados, espancados,
e entregues hipocritamente à secular justiça,
para que os liquidasse “com suma piedade e sem efusão de sangue.”
Por serem fiéis a um deus, a um pensamento,
a uma pátria, uma esperança, ou muito apenas
à fome irrespondível que lhes roía as entranhas,
foram estripados, esfolados, queimados, gaseados,
e os seus corpos amontoados tão anonimamente quanto haviam vivido,
ou suas cinzas dispersas para que delas não restasse memória.
Às vezes, por serem de uma raça, outras
por serem de uma classe, expiaram todos
os erros que não tinham cometido ou não tinham consciência
de haver cometido. Mas também aconteceu
e acontece que não foram mortos.
Houve sempre infinitas maneiras de prevalecer,
aniquilando mansamente, delicadamente,
por ínvios caminhos quais se diz que são ínvios os de Deus.
Estes fuzilamentos, este heroísmo, este horror,
foi uma coisa, entre mil, acontecida em Espanha
há mais de um século e que por violenta e injusta
ofendeu o coração de um pintor chamado Goya,
que tinha um coração muito grande, cheio de fúria
e de amor. Mas isto nada é, meus filhos.
Apenas um episódio, um episódio breve,
nesta cadeia de que sois um elo (ou não sereis)
de ferro e de suor e sangue e algum sêmen
a caminho do mundo que vos sonho.
Acreditai que nenhum mundo, que nada nem ninguém
vale mais que uma vida ou a alegria de tê-la.
É isto o que mais importa — essa alegria.
Acreditai que a dignidade em que hão-de falar-vos tanto
não é senão essa alegria que vem
de estar-se vivo e sabendo que nenhuma vez
alguém está menos vivo ou sofre ou morre
para que um só de vós resista um pouco mais
à morte que é de todos e virá.
Que tudo isto sabereis serenamente,
sem culpas a ninguém, sem terror, sem ambição,
e sobretudo sem desapego ou indiferença,
ardentemente espero. Tanto sangue,
tanta dor, tanta angústia, um dia
— mesmo que o tédio de um mundo feliz vos persiga —
não hão-de ser em vão. Confesso que
muitas vezes, pensando no horror de tantos séculos
de opressão e crueldade, hesito por momentos
e uma amargura me submerge inconsolável.
Serão ou não em vão? Mas, mesmo que o não sejam,
quem ressuscita esses milhões, quem restitui
não só a vida, mas tudo o que lhes foi tirado?
Nenhum Juízo Final, meus filhos, pode dar-lhes
aquele instante que não viveram, aquele objecto
que não fruíram, aquele gesto
de amor, que fariam “amanhã”.
E, por isso, o mesmo mundo que criemos
nos cumpre tê-lo com cuidado, como coisa
que não é nossa, que nos é cedida
para a guardarmos respeitosamente
em memória do sangue que nos corre nas veias,
da nossa carne que foi outra, do amor que
outros não amaram porque lho roubaram.
Lisboa, 25/6/1959