Boulevard Saint-Germain, Paris. Passo pela Place Sartre-Beauvoir – minúscula para o tamanho do nome –, observo as lojas chiques repletas de milionários turistas chineses e vejo cafés do século XIX que foram frequentados por gente como Picasso e Ionesco. Olho o menu pelo lado de fora e amaldiçoo cada um dos gênios que tornaram esses lugares famosos, fazendo-os cobrar R$20 por um cretino café expresso.
Estou no Quartier Saint Germain-des-Près, um dos mais caros da cidade, a poucos passos do Sena. O início do outono justifica o dia ensolarado, as centenas de piqueniques em todos os cantos verdes e as enormes filas em museus como o d’Orsay e o Louvre. Chego ao número 222, um prédio haussmaniano clássico, branquíssimo e adornado com balaustradas florais. Fechado. Até abril deste ano, seus 600m² guardavam raridades absolutas no que diz respeito a cartas e manuscritos originais assinados por personalidades históricas. Era o Musée des Lettres et Manuscrits (“Museu de Cartas e Manuscritos”).
O esboço original de Einstein que deu origem à Teoria da Relatividade; o manuscrito com que Luís XVI se dirigiu ao povo francês quando a revolução no país rumava para sua fase mais decisiva; a última carta de amor redigida e ilustrada por Antoine de Saint-Exupèry, enviada a uma jovem oficial no front da Segunda Guerra. Esses documentos das áreas de literatura, artes, música e ciências faziam parte da coleção do museu e foram exibidos, juntos de tantos outros, em exposições promovidas pela instituição antes de o prédio fechar as portas e ser apenas mais uma construção chique no sexto arrondissement parisiense.
Andando pelas calçadas depois de saírem do Jardin de Louxembourg ou extasiados após conhecerem as igrejas do bairro, turistas passam pelo 222 sem que façam ideia de sua história. O endereço certamente constou de guias de viagem algum tempo atrás como mais um dos pequenos e riquíssimos museus parisienses.
Inaugurado em 2004, começou exibindo algumas das peças mais relevantes de seu acervo de cem mil itens. Ali figuravam não só bastiões da literatura francesa representados por Balzac e Proust, mas figuras mundiais, como Tolstói e Goethe. Em manuscritos íntimos destinados a amigos e amantes ou correspondências mais triviais, era possível observar a riqueza desses documentos pelo número de visitantes que a instituição recebia – só na mostra sobre Napoleão, foram 250 mil em três meses. Além disso, a casa também tinha desdobramentos no setor editorial com a publicação de livros e a edição da revista trimestral Plume, dedicada à literatura epistolar.
Durante seus mais de dez anos de existência, o Musée des Lettres et Manuscrits promoveu várias mostras, tanto em sua matriz parisiense quanto na filial de Bruxelas, aberta em 2011. A mostra “Je n’ai rien a te dire, sinon que je t’aime” escolheu as cartas de amor como tema e mostrou a natureza desse tipo de correspondência íntima, de Sade até Brigitte Bardot. Já em “Des lettres et des peintres” figuraram os diálogos escritos entre pintores como Manet, Matisse e Gauguin, em documentos que também traziam desenhos.
Mas ainda que tenha exercido um importante papel ao selecionar, guardar e expor essas raridades literárias, o museu teve sérios problemas que o levaram a fechar as portas. Seus pilares se alicerçaram em fundos particulares provindos, na sua maioria, de Ghérard Lhéritier. O colecionador de manuscritos foi responsável pela criação, em 1990, da Aristophil, associação dedicada à compra de documentos raros. Mais do que interesse cultural, a iniciativa funcionava também como nicho de investimento – admitia sócios para especular em torno das peças comercializadas. As promessas eram de 8% de valorização por ano, o que fez o grupo enriquecer-se e acumular obras suficientes para criar o museu em 2004. Acusações de fraude e lavagem de dinheiro ainda em curso pelo governo francês fizeram a matriz parisiense e a filial de Bruxelas fecharem, terem seus bens leiloados e acabar com a Plume.
Voltando, passo pela estreitíssima Rue de Condé, onde carros e bicicletas conseguem conviver pacificamente, apesar do pouco espaço, e encontro por acaso uma loja especializada na venda de manuscritos. Na vitrine, papéis guardados em cápsulas de vidro exibem letras cursivas revoltas e têm ao seu lado outras pequenas indicações, dessa vez impressas em computador: “BEAUMARCHAIS – Bela carta sobre Mirabeau – 4800€”, “CLAUDE DE FRANCE – Raríssima carta da rainha da França – 5000€”. Os moradores de Paris se ressentem e não sabem se poderão ver esses documentos reunidos outra vez. Fica fácil entender o porquê depois de reparar nos preços. Volto para casa pensando que seria ótimo encontrar um bilhetinho de Rimbaud dentro de algum livro antigo em um dos milhares de minúsculos sebos da capital francesa.