Manuel Bandeira, Rio de Janeiro, 1964. Foto de Alécio de Andrade/IMS

Para Octavio Paz, em O arco e a lira (São Paulo: Cosac Naify, 2013), a poesia seria como uma metáfora do instantâneo, a conjunção entre um olhar que arruma, por analogia, contiguidade ou diferenças, certas imagens, sons ou palavras; e encontra outro olhar, cúmplice e receptor, que os receba, compreenda e aprecie. “Forma natural de expressão dos homens”, “pertencendo a todas as épocas”, ela é uma possibilidade permanente no mundo que pode ser extraído ou suscitado a todo momento. Fincada na linguagem humana, “no fundo de cada homem”, “algo que se confunde com o próprio tempo e também conosco, e que sendo de todos também é único e singular”.

Por sua vez, a prosa, “primordialmente um instrumento de crítica e de análise”, surge depois de longos esforços “destinados a domar a fala”, quando esta dá lugar aos “procedimentos do pensamento”, à coerência e à clareza. Portanto, contrariando o burguês de Molière, não seria verdade que se possa falar em prosa sem “ter plena consciência do que se diz”. No entanto, mesmo na prosa, “obedecendo a uma misteriosa lei da gravidade”, as palavras tenderiam a procurar naturalmente a poesia, como se ela
fosse o fulcro reanimador do pensamento e da comunicação.

Na sua escrita, Gilberto Freyre procurará tecer a interação entre as duas linguagens na condução de seu argumento em uma espécie de mimetismo dirigido, em que ele faz valer a força do analista e do crítico e a força do criador literário. Nesta direção, o sociólogo teria recebido inspiração e alento das novas tendências de expressão artística das primeiras décadas do século XIX; em particular de um movimento poético de vanguarda em língua inglesa: o imagismo. O seu contato com a poeta Amy Lowell, personagem central desse movimento, viria a se tornar uma referência na sua memória de vida intelectual e afetiva.

A originalidade desse movimento aos olhos de hoje, e após tantas vagas de modernismo, não é de fácil caracterização. No entanto, no texto Tendencies in Modern American Poetry (1917), Amy Lowell identifica três de seus aspectos singulares: 1) Apresentar uma imagem: não lidar com generalidades vagas, mesmo se representadas por palavras ou termos magníficos e sonoros; 2) Produzir uma poesia dura e clara, nunca obscura ou indefinida; 3) Finalmente, a concentração, a redução ao essencial é o próprio da poesia.

Essa ênfase no uso de imagens para exprimir ideias marcou profundamente Gilberto Freyre e veio mesmo a se tornar parte fundamental do seu estilo como escritor. Naquele vai e vem entre a prosa e a poesia sugerido por Octavio Paz – uma espécie de movimento de Sísifo da expressão e da comunicação humana – pode-se reconhecer semelhança com o itinerário do Gilberto escritor: montagem de grandes painéis plásticos, verdadeiras colagens cheias de objetos nomeados, de descrição sintética de comportamento, de sugestões de sons, de ambientes e cores associados a sentimentos vários – erotismo, preguiça, melancolia – completavam e integravam as suas grandes exposições de história social ou de sociologia. Desta forma, poder-se-ia dizer que o poema “Bahia de todos os santos e de quase todos os pecados” (1926), aliás escrito pouco depois do “Evocação do Recife” de Bandeira, pode ser lido como um texto sociológico, assim como Casa grande & senzala seria uma espécie de epopeia da História social brasileira.

Gilberto Freyre passou a alardear os méritos do imagismo entre os amigos. Mais tarde, em seu Vida, forma e cor (1987), assegurava:

[…] posso falar não de conversões literárias ou artísticas ao “imagismo” anglo-americano que se tivesse realizado por meu intermédio, mas de contatos que tornei possíveis entre brasileiros e ismos então de todo ou quase de todo ignorados no Brasil: mesmo os “modernistas” mais sofisticados do Rio e de São Paulo. […] Digo-o um tanto ancho de vaidade que por meu intermédio se aproximaram da new poetry Manuel Bandeira e Ronald de Carvalho.

O primeiro contato de Manuel Bandeira com esses poetas se deu através da The new poetry: an anthology, editada por Harriet Monroe e Alice Corbin Henderson, provavelmente emprestada por Gilberto Freyre em 1927, quando da passagem do poeta pelo Recife. De fato, em 4 de junho de 1927, ele escreve ao amigo:

Tua antologia já está comigo. Vou ficar com ela mais alguns dias pra travar relações com os irmãozinhos de língua inglesa.[1]

Todos os poetas citados por Bandeira na correspondência do período tanto para Ribeiro Couto como para Freyre referem-se a poemas dessa antologia. Em uma carta de 12 de julho de 1927, endereçada a Couto, Bandeira expressa seu entusiasmo por um desses poemas, no qual se veem o esforço de concentração e o senso de economia na linguagem que estiveram de mais a mais presentes na poesia de Bandeira:

Image
Like a gondola of green scented [cheirosa (acréscimo a lápis, acima
do vocábulo inglês)] fruits
Drifting [impelir / (deslizando) (acréscimo a lápis acima do vocábulo
inglês)] along in the dank [úmido (acréscimo a lápis]
canals at Venice
You, o esquisite one,
Have entered into my desolate city.
Robert Aldington”

Curioso perceber que Bandeira transcreveu errado o nome próprio: não era Robert, e sim Richard (1892-1962). Note-se que, na transcrição do poema na sua carta, Bandeira introduz a tradução para o português de alguns termos.

A lírica moderna nos fala frequentemente de “maneira enigmática ou obscura”, segundo Hugo Friedrich. O encanto da palavra eventualmente atrai o leitor por sua indicação de mistério, de profundidade, ou o seduz pela musicalidade ou qualquer outro atributo que surpreenda a sua inteligência sensível. A obscuridade do poema o fascina embora a compreensão muitas vezes o desconcerte. “A poesia comunicaria antes de ser compreendida”, é o que nos diz T.S. Eliot. Ou na expressão mais desabusada de Eugene Montale: “Ninguém escreveria versos se o problema da poesia consistisse em fazer-se compreensível”.

No entanto, se o poema navega entre a incompreensibilidade e o fascínio, o poeta busca a recepção e o acolhimento. No seu ofício, a operação que transforma a apreensão de uma imagem ou de uma situação em síntese verbal que atrai a cumplicidade do outro é o próprio da criação literária. E o exame das diversas maneiras de como esse circuito de cumplicidade se estabelece – mais ou menos intenso ou prazeroso – é geralmente a função da crítica. Por sua vez, o ensaísta social, se por acaso segue a fórmula de Gilberto Freyre, faz o percurso inverso: procura ir além da narrativa analítica incluindo recursos de expressão que possam aproximá-lo da complexidade indomável do real.

Por vezes, o criador busca individualizar um assunto que marcaria algum tipo de identificação universal entre os homens, como, por exemplo, as temáticas da morte e do amor, para citar talvez as duas mais populares. Diferentemente desses vastos tópicos, há os pequenos achados, muitas vezes idiossincráticos, que elevam particularismos em verdadeiras sínteses líricas, ao mesmo tempo que motivam, estabelecem e alimentam aquele circuito de cumplicidade entre o criador e o receptor.

Em Bandeira, esses pequenos milagres são uma invenção deliberada, desenhada e perseguida cuidadosamente. É o que se depreende de um trecho de carta a Ribeiro Couto, datada de 27 de julho de 1927.[2] Trata-se de seu conhecido “Profundamente”, poema reverberação do “Evocação do Recife”, à época ainda inédito. Refere-se aqui, mais precisamente, à parte final do poema:

Quando eu tinha seis anos
Não pude ver o fim da festa de São João
Porque adormeci
Hoje não ouço mais as vozes daquele tempo
Minha avó
Meu avô
Totônio Rodrigues
Tomásia
Rosa
Onde estão todos eles?
— Estão todos dormindo
Estão todos deitados
Dormindo
Profundamente.

Ali, Bandeira afasta-se radicalmente do simbolismo dos seus inícios, com suas metáforas e alusões, e toma o caminho da memória pela reinvenção da infância em uma poesia em que se convocam imagens concretas e personagens reais de sua história e de sua cidade:

[…] não falo da Rua da União, mas ela está ali tão presente quanto na “Evocação do Recife”:
Meu avô
Minha avó
Totônio Rodrigues
Tomásia
Rosa

A referência ao passado não é simples notação sentimental ou registro autocomplacente: trata-se de construção consciente em que o traço confessional se minimiza, procurando anular-se; e de tal maneira que o enumerar de nomes próprios de pessoas desconhecidas aos leitores (Totônio Rodrigues, Tomásia, Rosa), por assim dizer “puros significantes”, adquire valor de representação de sentimentos, de observações críticas e de significados. Como se a realidade concreta fosse recortada em poesia ou, o
que vem ao mesmo, a poesia desenhasse sobre o real. O conjunto dessas imagens singelas da infância – que lhe acende a sensibilidade e atiça a inteligência como uma epifania – vem a ser presença efetiva na poesia de Manuel Bandeira e tem no “Evocação de Recife”, longo e enumerativo poema visual, um ponto de referência (talvez até um ponto inicial) marcante.

Em “Manuel Bandeira em três tempos” (1936), Gilberto Freyre traz a apreciação certeira:

Cada palavra é um corte fundo no passado do poeta, no passado da cidade, no passado de todo homem, fazendo vir desses três passados distintos, mas um só verdadeiro, um mundo de primeiras e grandes experiências da vida. Não há uma palavra que seja um gasto de palavra. Não há um traço que seja de pitoresco artificial ou de cenografia.[3]


[1] Vicente, Silvana Morelli. Cartas provincianas: correspondência entre Gilberto Freyre e Manuel Bandeira. Tese de doutorado submetida ao Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007, p. 204.

[2] In: Arquivo Museu de Literatura Brasileira, Fundação Casa de Rui Barbosa, Rio de Janeiro.

[3] Freyre, Gilberto. Perfil de Euclides e outros perfis. São Paulo: Global, 2013. p. 361. Trata-se da reunião de três textos sobre Bandeira publicados por Freyre ao longo de sua vida. A citação é extraída de “Manuel Bandeira, recifense”, de 1936.