A correspondência entre escritores – por onde circulam ideias, sugestões, boatos, fazem-se e desfazem-se influências, chocam-se os temperamentos e consolidam-se as cumplicidades – pode vir a constituir uma mina para o crítico ou apenas – e não é pouco – uma festa para os olhos curiosos de aficionados da literatura. Nas cartas, às quais se podem acrescentar as notas e escritos autobiográficos, testemunhos de contemporâneos etc. – encontramos elementos que caracterizariam a historicidade dos textos, assim como eventuais traços, vestígios do processo criativo e do contexto psicossociológico em que este se processa.

São documentos à margem da obra acabada que subsidiam eventualmente análises nas quais se privilegia o fazer literário buscando colocá-lo “em presença”, vivo na sua hesitação, dispersão e precariedade. Figurativamente, seriam elementos de uma arqueologia que visaria a reconstituir o ato de criação.

Tomemos o exemplo da presença de Gilberto Freyre na poesia de Manuel Bandeira.

Em 1923, um Gilberto Freyre muito jovem[1] volta ao Brasil de uma temporada de estudos nos Estados Unidos e na Europa. Reinstala-se no Recife e passa a escrever regularmente artigos para o Diário de Pernambuco, em que divulgava com desenvoltura o que aprendera no exterior e torcia o nariz diante da produção nacional impressa. Segundo o testemunho de José Lins do Rego:[2]

Gilberto Freyre chegara da Europa e eu quis aproximá-lo da nova poesia brasileira. Não houve, porém, contato que satisfizesse o jovem que chegava cheio de tantas prevenções contra a nossa pobre literatura. […] Dissera sobre Gonçalves Dias que nós não havíamos tido um grande poeta, mas pedaços de grandes poetas em Castro Alves, Álvaro de Azevedo, Gonçalves Dias. Isto foi em 1923. […] Um ano depois, Gilberto Freyre encontrara um grande poeta no Brasil.

De fato, Gilberto Freyre escreve “A propósito de Manuel Bandeira” no Diário de Pernambuco (21/06/1925) muito provavelmente[3] comentando o livro Poesias, editado em 1924.[4] Nele, procura associar os traços e temperamentos do poeta à sua enfermidade, a tuberculose – “mal de época” que impregnara igualmente o imaginário social, marcando de maneira especial o pensar e o sentir do criador Manuel Bandeira:          

Versos cheios da dolorosa coragem de ser doente, os versos do Sr. Manuel Bandeira […] um homem em que a emoção da doença aproximou da alma. Daí talvez a sua voz baixa: por ser a de um homem perto da alma. […] Conhece o pudor […] é a emoção íntima da doença criando no poeta um estado de alumbramento:

 “Eu vi os céus! Eu vi os céus!

  Oh, essa angélica brancura”[5]

Mas nesses aparentes olhos de meninos em dia de Primeira Comunhão […]ardem também lúbricas pontas de dedos em busca de formas de mulher […] E, entretanto são versos que por vezes terminam no desencanto da volúpia erótica:

“A volúpia é bruma que esconde

Abismos de melancolia.”[6]

Nunca, entre nós, poeta nenhum cantou o amor por mulher nessa voz misticamente grave...[7]

A partir desse artigo no Diário de Pernambuco, sobrevieram aproximações sucessivas entre os dois, a elaboração de uma espécie de “afinidade eletiva” que associaria as sensibilidades e os interesses criativos de ambos.

A expressão, como se sabe, é derivada da alquimia medieval: servia para explicar a atração e a fusão dos corpos. Foi depois utilizada por Goethe e Max Weber, designando um tipo especial de interação entre indivíduos, no caso de Goethe, ou entre configurações sociais ou culturais, no caso de Weber, não redutíveis à determinação causal direta ou à “influência” no sentido tradicional. Seria como que uma coincidência feliz mutuamente reconhecida que vingara e se autoalimentara.

Desde logo, ainda em 1925, Bandeira comunica em carta a seu amigo Ribeiro Couto: “Mando-lhe os versos que fiz a pedido do Gilberto Freyre, pernambucano inteligentíssimo do Recife, para o álbum comemorativo do centenário do Diário de Pernambuco”.[8] Os “versos” eram o poema “Evocação do Recife”, publicado pela primeira vez a 7 de novembro de 1925, no álbum comemorativo mencionado, que ganhou o título de Livro do Nordeste.

Anos depois, em 1936, Gilberto Freyre relataria o seu primeiro contato com Bandeira em um texto cujo título – “Manuel Bandeira, recifense”[10] – comemora, por assim dizer, a reconversão do poeta à terra natal:

Nossa amizade começou por carta. Começou com a carta que um dia recebi dele; que li com uma alegria enorme e que devo ter guardada entre os meus papéis mais queridos. Era uma carta cheia de simpatia por uns artigos meio líricos que eu andava escrevendo no DP [Diário de Pernambuco] artigos sobre coisas de Pernambuco, de Recife, do Norte. Sobre a paisagem, sobre os nomes de rua, sobre a cozinha tradicional do Norte do Brasil.

Precisamente um artigo sobre a cozinha pernambucana, sobre o munguzá, o doce de goiaba, a tapioca molhada, é que fez com que Manuel Bandeira me escrevesse. Eu respondi afoito: pedindo-lhe o poema sobre o Recife de sua meninice

Sucede, no caso – continua Gilberto, no mesmo texto – que o poema em certo sentido mais brasileiro de Manuel Bandeira – “Evocação do Recife” – ele o escreveu porque eu pedi que ele o escrevesse. O poeta estranhou a princípio o pedido do provinciano. Estranhou que alguém lhe encomendasse um poema para uma edição especial de jornal como quem encomenda um pudim ou uma sobremesa para uma festa de bodas de ouro. Não estava acostumado – me escreveu de Santa Teresa – a encomendas dessas. Mas um belo dia recebi “Evocação do Recife”.

Nascido no Recife, em 19 de abril de 1886, Manuel Bandeira deixa a cidade para o Rio de Janeiro com seus pais aos quatro anos, em 1890. Em 1892, volta com a família para Pernambuco. Em 1896, os Bandeira mudam-se novamente do Recife para o Rio, onde se estabeleceram em Laranjeiras. Fixa-se definitivamente nesta cidade até a sua morte em 13 de outubro de 1968. O poeta só voltaria a sua cidade natal em 1927, aos 41 anos, dois anos após a publicação do poema.

Não saberia dizer se “Evocação do Recife” é o poema mais brasileiro de Bandeira, mesmo quando aponho a qualificação “em certo sentido”, um tanto enigmática e tão “gilbertiana”.[12] Mas poderia afirmar, invocado o testemunho do poeta no seu Itinerário de Pasárgada,[13] que o seu contato em 1925 com Gilberto Freyre – cuja “sensibilidade tão pernambucana muito concorreu para me reconduzir ao amor da província e a quem devo ter podido escrever naquele mesmo ano a minha ‘Evocação do Recife'”e a sua encomenda hajam por assim dizer evocado a “Evocação”. E mais: espicaçada a memória do poeta, tenham possibilitado que a matéria da sua vida recifense viesse a se mesclar harmoniosamente com o que observava no seu cotidiano simples de Santa Teresa, onde vivia, tornando-se um dos elementos ativos na sua poesia.

Este período assistiu à “formação do estilo humilde do poeta maduro, forjado para dizer o sublime através do simples”.[14] Bandeira viria assim a desenvolver uma empatia ativa, militante pelo mundo ordinário, pelo dia a dia, pelas surpresas contidas na fala brasileira, utilizando recursos de construção poética os mais variados e os materiais mais diversos, reconhecendo “a poesia em tudo, podendo repontar onde menos se espera e fazendo do poeta o ser capaz de desentranhá-la no mundo”.[15]

Datam de então, e sobretudo da segunda metade da década de 1920, os poemas de Libertinagem, livro publicado em 1930 que reúne trabalhos bem característicos dessa fase, como “Profundamente”, “Porquinho-da-índia”, “Irene no céu”, “Pensão familiar”, “Poema tirado de uma notícia de jornal” e o próprio “Evocação do Recife”.

Mais tarde, ao refletir sobre a sua poesia, Bandeira sublinha a importância da emoção particular (ou dessas reminiscências), fincada na memória da infância e que ele vai identificar com outra – a de natureza artística:

Desde esse momento, posso dizer que havia descoberto o segredo da poesia, o segredo do meu itinerário em poesia. […] O conteúdo emocional daquelas reminiscências da primeira meninice era o mesmo de certos raros momentos em minha vida de adulto: num e noutro caso alguma coisa que resiste à análise da inteligência e da memória consciente, e que me enche de sobressalto ou me força a uma apaixonada escuta.[16]


[1] Tinha 23 anos, a idade do século.

[2] Rego, José Lins do. “Manuel Bandeira mestre da vida” In: Homenagem a Manuel Bandeira. Rio de Janeiro: Officinas Typographicas do Jornal do Commercio, 1936. p. 106.

[3] “Provavelmente” porque o artigo não se apresenta como uma crítica do livro e não menciona o seu título, embora todos os poemas citados pertencessem ao Poesias.

[4] O volume reunia três livros prévios de Bandeira: A cinza das horas, Carnaval e Ritmo dissoluto.

[5] Versos do poema “Alumbramento”, do livro Carnaval.

[6] Versos do poema “Pierrot místico”, do livro Carnaval.

[7] Cf.: “A propósito de Manuel Bandeira”. In: Freyre, Gilberto, Tempo de aprendiz, op. cit. vol. 2, pp 177-179.

[8] A correspondência entre Manuel Bandeira e Ribeiro Couto encontram-se no Arquivo-Museu de Literatura Brasileira da Fundação Casa de Rui Barbosa.

[10] Cf. “Manuel Bandeira, recifense”. In Perfil de Euclides e outros perfis. Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1944, p.175.

[12] Dada a sua aversão ao assertivo e ao peremptório.

[13] Cf. “Itinerário de Pasárgada”, de Manuel Bandeira. In Manuel Bandeira. Seleta de prosa, op. cit. p. 326.

[14] Arrigucci Jr., Davi. Humildade, paixão e morte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 140.

[15] Arrigucci Jr., Davi. O cacto e as ruínas. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2000, p. 141.

[16]Itinerário de Pasárgada”, de Manuel Bandeira. In Manuel Bandeira. Seleta de prosa. Org. Júlio Castañon Guimarães. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998, p. 295.