Se todas as cartas de amor são ridículas – e não à toa o disse o maior poeta português do século XX: “Nininho” foi um dos muitos apelidos assumidos por Fernando Pessoa nas cartas endereçadas à jovem Ofélia, seu “Bébézinho” – algumas são tão ridiculamente belas que nos comovem pela força do seu discurso amoroso e tornam verdadeira a afirmação de que “ao escrever a quem se ama, não se escrevem cartas, escrevem-se hinos”, como quis Rousseau.

Dentre as mais belas páginas da história da epistolografia estão aquelas enviadas pelo escritor russo Vladimir Nabokov à sua mulher, Véra, recentemente traduzidas para o inglês e reunidas no volume Letters to Véra.

Os dois se conheceram num baile em maio de 1923, em Berlim e, na ocasião, a moça de 21 anos recitou, de cor, para o jovem escritor alguns poemas de V. Sirin, pseudônimo de Nabokov, que designava uma criatura mitológica russa com cabeça e seios de mulher e corpo de pássaro. Amor à primeira vista, o futuro autor de Lolita encantou-se com a inteligência de Vera (o acento sobre o “e” viria depois), seu senso de humor, espírito de independência e amor pela literatura: “[…] logo nos primeiros minutos do nosso encontro eu pensei: isso é uma brincadeira… […] Sim, eu preciso de você, meu conto de fada. Porque você é a única pessoa com quem eu posso falar sobre a sombra de uma nuvem, sobre a música de um pensamento”, escreveria dois meses depois do encontro que os marcaria para sempre.

Véra se tornaria não apenas sua mulher, mas também editora, leitora, tradutora, assistente, secretária, chauffeuse, e até mesmo guarda-costas: conta-se que levava em sua bolsa um pequeno e elegante revólver para protegê-lo. Foi ela ainda que impediu a destruição do manuscrito de Lolita, obra que daria prestígio a Nabokov e o tornaria o escritor vivo mais polêmico dos Estados Unidos, para onde emigrou. A biógrafa norte-americana Stacy Schiff conta que Véra “jamais relaxou”, porque, como dizia a russa, sua biografada, “me casei com um gênio”. Em retribuição, a ela Nabokov dedicou todos os seus livros.

Se “nenhum matrimônio literário do século passado durou mais” – cerca de 52 anos, até a morte do escritor –, como afirmou o especialista Brian Bloyd, um dos organizadores de Letters to Véra, a pista para essa longevidade pode estar nas cartas. Nelas, observa-se uma intensificação do falar amoroso. Em novembro de 1923, Nabokov escrevia: “Como eu posso te explicar, minha alegria, minha maravilhosa alegria dourada, o quanto eu sou todo seu – com todas as minhas memórias, poemas, ataques, turbilhões interiores? […] eu juro que eu nunca amei antes como eu amo você, – com tanta ternura – a ponto de lágrimas – e com tanto senso de esplendor”. Três anos depois, em julho de 1926, já casado com Véra, ele escreve: “Te amo, minha menina, minha vida, meu voo, meu movimento…”, como, mais tarde, de maneira similar, o narrador-personagem Humbert Humbert escreveria: “Lolita, luz da minha vida, fogo das minhas entranhas, meu pecado, minha alma…”.

Assim como Pessoa, e a maioria dos apaixonados, Nabokov criou muitos apelidos carinhosos para Véra, especialmente no período em que ela esteve internada num sanatório suíço. Em parte para alegrá-la, mas também como um exercício criativo de linguagem amorosa, os termos tradicionais com os quais ele abria as primeiras cartas – “minha felicidade” (“my happiness”), “meu amor e alegria” (“my love and joy”), “minha querida vida” (“my dear life”) – deram lugar a uma série de apelidos de difícil tradução para o português, quase todos inspirados no amor de Véra por animais: “sparroling” (relativo a pardal), “Mousie” (referência carinhosa a rato), “Long bird of paradise with the precious tail” (“Longo pássaro do paraíso com a cauda preciosa”), e “Pupuss”, que o próprio autor explica como “um pequeno cruzamento entre um cachorrinho e um gatinho”.

As cartas de Nabokov para Véra – ela destruiu as que enviou para o marido –, são uma importante peça para a compreensão do notável e polêmico escritor que, com seu talento literário e olhar cuidadoso para tudo que o envolvia, tece comentários sobre diversos assuntos, não se restringindo a falar sobre seus sentimentos e expectativas em relação à amada. E se, nesses momentos, mesmo com toda a beleza e singularidade de sua escrita, não escapa a certos clichês ou lugares-comuns do falar amoroso, lembremos que o mesmo Pessoa, pela voz do heterônimo Álvaro de Campos, conclui no famoso poema que abre este texto: “Mas, afinal,/ Só as criaturas que nunca escreveram/ Cartas de amor/ É que são ridículas”.