Porque cartas são livros em pedaços, e vidas entrelaçadas.
Rio de Janeiro, 11/11/24
Pai,
Já faz dois anos que você não está mais aqui, e ainda está aqui. Te sinto por perto, tenho a sensação de que vivemos uma quase-conversa. Como se você continuasse me enviando mensagens cifradas, tal qual na carta que recebi em Paris, em 1999. Agora, escrevendo nas finas cordas dos cantos dos pássaros que circundam as minhas janelas, quando um ou outro entra na casa, coisa rara, tenho certeza de que é mesmo você, e a mensagem ouvida deixa um traço de letra na parede.
Escolho o pássaro, mas é uma escolha sem razão, sem saber de onde vem. Bom, aqui, neste momento, te escrevendo, diria que você voou até quando foi preso. O voo e a forma como o rastro se faz presente no canto, a agilidade e a liberdade que incarnam o corpo-pássaro me parecem atributos que lhe cabem, nessa vida outra que agora é a sua. Assim escolho, sem saber. Escolho a nossa disponibilidade poética para com toda forma de vida. Como fazíamos quando cantávamos para as árvores, ou conversávamos com os animais. Ou talvez porque tenha passado com minha mãe a noite ao meu lado, tentando colar a asa quebrada daquele beija-flor, atingido pelo chumbinho da espingarda dos meus irmãos.
Você morreu e não viu o lançamento do meu segundo romance, No muro da nossa casa. Ele é breve, mas tem chumbo dentro. A casa é a que você cita na sua carta para mim, o livro é onde finalmente tenho aquela longa conversa que, em vida, nunca tive com a minha mãe, sobre o que ela teria sentido naqueles anos duros, ou quando foi presa grávida de mim.
Se estivesse vivo, certamente iria chorar quando lesse, mas talvez não gostasse do livro, pelos medos que falar disso te provocava. Da conversa sim, sei que gostaria. Porque nós sempre conversamos muito, e até quando as nossas brigas eram conversas mal faladas. Tudo isso me ajudou a entender os silêncios da mãe, da vida, e hoje também a minha necessidade de silêncio. Mas nunca me deixou entender os medos que insidiosamente restavam em você, em nós, após as brutalidades sofridas em decorrência do “Movi Militar”, como você escreveu, de forma ainda cifrada, na carta de 1999.
Essa carta que torno agora pública, em homenagem a você meu pai. Porque nela rasga o desejo de liberdade, e não o de censura. Rasga o amor e não o ódio. O seu amor pelos livros, pelo conhecimento, pela troca e pela humanidade. E o seu amor por mim, sua filha. Apesar de tudo o que foi demolido, ela, a carta, segue intacta e, agora, sem medo.
Hoje, como relíquia, como dádiva, como revelação – porque nela está também a casa de No muro da nossa casa, nela estão os traços do “exílio” que vocês não viveram, mas que restou como sonho que plantaram em mim. Nela estão as botas que atestam como os militares invadiram a nossa casa na Fagundes Varela e levaram, entre outros, um livro vermelho, certamente pela capa, porque não creio que o tenham lido, pai. E nem a sua forma “elegante” de referendá-los como intelectuais de segurança do Movi Militar me convence do contrário. Nela restam os traços do seu medo. Nela está traçado o plano de horror ao vermelho que se construiu no Brasil, e como ele perdura, mesmo quando muda. Nela estão os outros dois livros de Josué de Castro que não foram levados pelos militares. Ele, que acabou morrendo no ou do exílio, “impedido” pelo “mesmos” que levaram da nossa casa o seu livro vermelho. Você sobreviveu em in-xílio, e sobreviver é muito num país como o nosso. Há que ter fome de vida para não morrer no Brasil.
Reli a sua carta ao mesmo tempo que lia a carta do Hélio Pellegrino ao seu pai. Porque nela o Hélio festeja o aniversário do pai, e a ele escreve, mesmo quando morto. Porque escrever cartas é atravessar distâncias, e a morte é também uma distância que nos atravessa a todos. Porque você e Hélio eram psicanalistas. E fizeram de mim algo assim também. Porque você também me deu um livro do Hélio, quando comecei a faculdade de psicologia. E nunca me esqueço que nesse livro ele falava de outro autor da fome – Glauber Rocha. Os autores da fome têm fome, e alguma víscera sempre borra a letra que escrevem.
Hélio dizia que Glauber era como uma vela que queimava dos dois lados. Vivi com essa frase por muito tempo, entre terror e amor. Porque sempre achei que você e eu também éramos assim, e quando a li fiquei com medo da sua morte, e da minha. Mas você viveu, e eu sigo viva.
Quando a sua morte chegou eu já não tive mais medo dela, porque você sobreviveu, você refez a vida, que, apesar dos medos, ou com os medos, foi uma vida plenamente vivida. Você portou a sua vida e a vida até o fim. Talvez seja esse portar que defina um modo de viver o luto, um modo em que a conversa pode continuar, sem que sobre ela derramemos o nosso próprio sangue. Porque viver grandes perdas é experimentar esse vácuo no corpo, por onde o sangue se esvai. Atravessar o luto é suportar por um tempo a dor sugando o seu sangue. Mas você, que deu mais do que sugou, não foi vampiro nem com o nosso luto. Senti como se também nos liberasse para viver outros gostos da e pela vida. Tem tristeza, tem. E muita maldade no mundo. Qual o segredo então? A tal da fome, de vida.
Mesmo que não tenha dado aviso prévio, a sua morte foi ligeira. Você foi rápido e ágil, como era na sua mais vívida potência. Mas, mesmo rápida, resistiu à morte. Teve dois infartos no CTI e o seu coração ainda assim não parou de pulsar. Eu te levei para o hospital, sua pressão estava 6 por 4 e você ainda brincou com a enfermeira, porque a sua alegria e o seu gosto pelo rir nem na morte te deixaram. Como ficar só triste com alguém que viveu tudo o que você viveu e ainda morreu assim, sorrindo para o mundo?
O luto aqui se perfaz do que disse o seu companheiro Helio, em carta ao seu pai já falecido, em 1970: “você está maduro, cumprido, completo, além da sorte, do rumor do mundo”. Você morreu assim pai: maduro, cumprido, completo. E quando o rumor do mundo faz falta te ouço cantar.
No hospital ficamos juntos todo o tempo em que você estava consciente, e pude lhe dizer como honraria a sua memória e como você me ensinou tanto da vida. Ali começou o meu luto. Não, minto. Ele começou antes, em 2018, quando de novo eu partia com a sua neta para um ano sabático na cidade que você sonhou toda a vida conhecer. A Cidade Luz continuava acesa, mas já naquele ano algo em você ia se apagando. Ali começou o meu luto. Parte de você já não estava mais aqui. O pai forte, que sempre tentou me proteger, já não tinha mais os recursos para fazê-lo.
Um luto nunca se fecha, ele se transforma. E às vezes começa antes da morte. Talvez porque tenha começado assim, conversando com você, estivesse mais inteira no momento da sua partida. Na hora H me agarrei ao fato imaterial, impalpável, e ao mesmo tempo o mais real de todos os fatos: o fato de que você viveu, e apesar de terem tentado da forma mais vil te matar, te silenciar, te expulsar, você viveu! Então, até na tua morte, lá num canto dentro de mim, eu dizia: Viva você, pai! Viva você, pai!
Viva você, que sempre criou saídas, mesmo em in-xílio. Face ao silenciamento, inventou uma salinha para falar e ouvir. E, desse modo, continuou fazendo política da vida, e não mais vida política. Como psicanalista reconstruiu dignamente a nossa vida, conheceu o Helio, e tantos outros que entraram no nosso mundo, e na nossa biblioteca. Você continuou sobretudo, e não sei como, cuidando. Cuidando de muita gente. Guardando aquela humanidade, que é justo o que se despedaça quando a maldade nos atinge.
Você foi traído por muitos e seguiu sabendo ser amigo.
Você acabou encontrando uma versão de 1945, rasgada e velha, num sebo em Niterói, da Geografia da fome, de Josué de Castro, aquele livro vermelho que foi levado da nossa casa, como você me contou anos depois, na sua carta, que por acaso reencontrei agora, quando decido te escrever. Acabou enviando-o para Paris. E junto com ele chegava também a sua fome de mundo, a sua fome de um outro mundo. Ou deste mundo, um pouco melhor.
Agora os três livros de Josué seguem aqui ao meu lado. Apesar das botas, eles resistiram ao tempo. Você, que também resistiu às botas, não teve tempo de escrever o seu livro, mas a sua carta, a sua vida e, agora, todas essas cartas são um pouco desse livro que faltou escrever. Porque cartas são livros em pedaços, e vidas entrelaçadas. Mais vale uma carta que crie vida do que um livro que espalhe a cegueira e a morte.
Pai, você morreu no dia 20 de março de 2022 às 20 horas e 20 minutos (olha isso!), com 86 anos de idade, de choque cardiogênico, infarto agudo do miocárdio, infecção do trato urinário, hipertensão arterial sistêmica, diabetes mellitus, diz a sua Declaração de Óbito. Eu diria: você morreu para continuar nos ajudando, porque daqui não dava mais.
Mas o fato é que você faleceu justo quando eu deveria pegar um avião para Dakar, era o convite mais importante, até aquele momento, que recebia como intelectual e escritora. Nunca tinha ido à África, ouvi a minha filha, a sua neta, que me disse: vai, mãe, vai, eu vou ficar bem! Que neta, hein, avô? Fui, cumpri “a minha missão”. Foi muito difícil depois do seu enterro enfrentar 24 horas de viagem para fazer uma palestra e logo mais 24 horas para voltar. Os caminhos têm mistérios que, como a morte, habitam a vida. E nos trazem presentes, como o passarinho que pousou outro dia aqui em casa, neste quadro específico, que comprei no dia seguinte à morte de minha mãe, 13 de maio de 2012, três dias antes do meu próprio aniversário. Quando voltei de Dakar trouxe comigo uma pedra, dada por uma artista nigeriana, Otobong Nkanga. Era uma pequena pedra cinza que, em minhas mãos, no decorrer da sua performance, ficou preta. Intuí que por alguma razão deveria levá-la ao terreiro em Recife. Descobrimos que aquela pedra era o seu Xangô, pai, hoje assentado, como nos foi pedido, junto ao meu. Xangô é o Orixá da Justiça, e o único cujo assentamento nunca será enterrado com o iniciado quando esse vem a falecer, devendo passar de geração em geração sobre a terra, nunca debaixo dela. Naquele momento soube que você, meu pai, não era só meu antepassado, você era também um ancestral. Sobrevivendo às rachaduras da terra, nas brechas onde vida e morte conversam, num tempo infinito.
Um beijo na sua testa, pai, daqueles que você sempre me dava,
outro no seu coração, que parte dele ainda pulsa dentro do meu.
Com amor, sua filha,
Ana
Transcrição da carta de 20/1/99
De João Kiffer Netto (1936-2022)
para Ana Kiffer
Querida filha,
Eu havia lhe dito que saíra um livro tratando a questão do exilado, que acredito possa ser útil nas suas elaborações sobre a pós-graduação no exterior. Na verdade, é uma Dissertação de Mestrado, ou melhor, Tese de Doutorado da historiadora Denise Rollemberg Cruz, com o título Exílio: entre raízes e radares, que segundo a reportagem no JB 27/12, assinada por Mauro Ventura, pode ser editada. Estou tentando + detalhes e volto a lhe informar.
Sobre o Josué de Castro, Geografia da Fome, como lhe disse, foi levado pelos intelectuais da segurança do Mov. Militar, na invasão de nossa casa na Fagundes Varela, você ainda estava em gestação e veio a nascer +- três meses e meio após o fato. Encontrei na minha biblioteca dois outros dele: Ensaios de Biologia Social (capa azul) e Geografia da Fome (2 volumes em capa verde claro).
O de capa vermelha vou tentar achar nos sebos, não há reedições …
Com muitos beijos o carinho e a ternura do pai
João
P.S.: Estou postando hoje (1/2) junto artigo do Costa Lima
Mais beijos