Bem quisera escrevê-la
com palavras sabidas,
as mesmas, triviais,
embora estremecessem
a um toque de paixão.
Perfurando os obscuros
canais de argila e sombra,
ela iria contando
que vou bem, e amo sempre
e amo cada vez mais
a essa minha maneira
torcida e reticente,
e espero uma resposta,
mas que não tarde; e peço
um objeto minúsculo
só para dar prazer
a quem pode ofertá-lo;
diria ela do tempo
que faz do nosso lado;
as chuvas já secaram,
as crianças estudam,
uma última invenção
(inda não é perfeita)
faz ler nos corações,
mas todos esperamos
rever-nos bem depressa.
Muito depressa, não.
Vai-se tornando o tempo
estranhamente longo
à medida que encurta.
O que ontem disparava,
desbordado alazão,
hoje se paralisa
em esfinge de mármore
e até o sono, o sono
que era grato e era absurdo
é um dormir acordado
numa planície grave.
Rápido é o sonho, apenas,
que se vai, de mandar
notícias amorosas
quando não há amor
a dar ou receber;
quando só há lembrança,
ainda menos, pó,
menos ainda, nada
nada de nada em tudo,
em mim mais do que em tudo,
e não vale acordar
quem acaso repouse
na colina sem árvores.
Contudo, esta é uma carta.
Antologia Poética. 26ª. ed. Rio de Janeiro : Record, 1991, p. 74-6
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Você acaba de ler “Carta”, poema de Carlos Drummond de Andrade, publicado no livro Claro enigma, de 1951. À primeira leitura, o caráter metalinguístico que conduz o poema salta aos olhos: o remetente promove uma reflexão em versos sobre a correspondência epistolar. Em outras palavras, a carta deita-se em um divã para ser analisada por Drummond, poeta que buscou compreender o lugar do Eu no mundo em rápida transformação.
Nos primeiros versos, o autor faz um alerta para o estado do remetente e revela a qualidade do eu lírico, isto é, anuncia quem escreve. Já não é possível usar “palavras sabidas”, porque o autor é tocado pela paixão. Dessa forma, os signos ganham um tom lírico-amoroso, que se dilui em contato com a temática central do poema.
O remetente, aliás, mostra-se em terreno pantanoso ao utilizar duas imagens complementares: “argila” e “sombra”. A primeira é matéria plástica, a segunda, um substantivo abstrato. Unem-se na construção de um cenário sóbrio, porém não sombrio, onde o remetente imagina a carta e declara um amor à sua maneira.
Ao dizer que espera uma resposta, Drummond introduz ao poema um pensamento sobre a temporalidade, questão inexorável à correspondência epistolar. Todo remetente escreve a um destinatário, assim funciona o esquema básico da comunicação. Contudo, entre emissor e receptor, o tempo materializa-se como motivo de angústia. Haverá resposta? Quando haverá resposta? Drummond lembra que “as chuvas já secaram”, os dias passam depressa sem que o destinatário lhe envie a carta.
O poeta também olha para a frente, mira o futuro ao lembrar dos avanços tecnológicos da época. Claro enigma insere-se em um contexto histórico de grandes transformações e disputas políticas. Era tempo da Guerra Fria, com as corridas armamentista e espacial, e das consequências das bombas lançadas em Hiroshima e Nagasaki, em 1945. Dividida em cinco partes, a obra seminal do poeta mineiro absorve a desilusão do momento histórico em um esforço hercúleo para dar sentido ao absurdo. Drummond não é poeta de figuras minimalistas. Não teme o uso da palavra “mundo”, porque soube evitar solenes megalomanias.
Afinal, em “Carta”, o tempo não dura mais ou menos do que a marcação do relógio. Drummond mergulha em um belo oxímoro ao escrever que os minutos se alongam, uma vez disparada a epístola, mas encurtam com a proximidade da resposta. O mesmo raciocínio pode ser aplicado à vida, que se apequena diante da morte. Dessa forma, o “desbordado alazão” vai de encontro à “esfinge de mármore”, em um melancólico e inquietante pano de fundo, onde já não é possível dormir. O eu lírico estaria em paz caso não amasse, ou tivesse o amor como mera lembrança, e finda o poema, ou melhor, a carta, com a mesma sobriedade inicial: já não despertaremos sentimentos de quem repousa em uma “colina sem árvores”.
Drummond escreveu outro poema com o mesmo título, já publicado no correioIMS. Em Lição de coisas (1962), “Carta” é um soneto dirigido à mãe do poeta, Julieta Augusta Drummond de Andrade. O modernista utiliza um tom mais direto e mostra doçura ao escrever os versos “É quando, ao despertar, revejo a um canto/ a noite acumulada de meus dias,/ e sinto que estou vivo, e que não sonho.” É interessante notar que não se trata apenas de um interesse de Drummond por cartas. O Instituto Moreira Salles tem a guarda de 836 itens da correspondência familiar e pessoal do poeta de Itabira.