Rio de Janeiro, 26 de abril de 1946
Sr. Oswald de Andrade,
Recebi, nesta heroica cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, onde há quase 30 anos vegeto como advogado, o seu “Telefonema”, transmitido pelas linhas do Correio da Manhã de terça-feira, 23 do corrente, através da estação da página 2 e do número da 5ª coluna.
Imaginará, por certo, que este seu colega “bacharel”, sendo advogado, não gostou de ouvi-lo dizer, neste seu “Telefonema” terrorista, que para o sr. “nunca um advogado seria um defensor do deserdado ou do fraco”, motivo pelo qual, explica, entre revoltado e satisfeito: “nunca pude ser um advogado”.
Permita-me, bacharel Oswald de Andrade, que, na desvalia de minha condição de advogado insignificante, eu, em nome dos direitos da verdade, lhe afirmo, atrevida e petulantemente, que advogados existem, e numerosos, neste Brasil tão anarquizado e deprimido, que em audiências que o público não frequenta, a imprensa não fiscaliza e os homens de letras afamados desdenham, se colocam, cotidianamente, como defensores ex officio,[1] sem a menor remuneração e o menor interesse pessoal, ao lado de deserdados e de fracos, para ampará-los contra a opressão de uma ordem social e o arbítrio de autoridades policiais, que, apesar de iníquas e agressivas, são prestigiadas por juízes e tribunais inteiramente alheios às desgraças de seres que não tiveram lar, escola e formação moral, que lhes ensinassem ou lembrassem, no decorrer de uma vida que se tornou prostituída e perniciosa, que eles fazem parte desta imensa família humana da qual a característica suprema é constituída pela dignidade e realeza do espírito.
Na esperança de convencê-lo de que agravou sem razão a muitos bacharéis que, desprovidos dos brilhantes dons literários que enriquecem a sua personalidade, se fizerem, por míngua de recursos intelectuais, advogados militantes, – não para defenderem uma “sociedade terrorista”, que repele o pobre e esmaga o fraco, mas para empunharem, sem quaisquer objetivos de proveitos pessoais, a espada vingadora da justiça universal e eterna –, tomo a liberdade incrível e ousada de enviar-lhe cópia de umas razões de defesa, – apanhadas entre muitas outras do meu arquivo –, que, como advogado ex officio, apresentei, já lá vão 15 anos, ao Tribunal de Apelação desta capital, onde reivindicava para um “deserdado” e “fraco” direitos fundamentais que lhe estavam sendo injustamente negados. Vi pela primeira vez esse homem, – que a polícia chamava de “ébrio, desordeiro e ladrão” –, no momento em que era iniciado o seu processo. O trabalho de que agora, a título de exemplo, lhe remeto cópia, mostra o ardor e o esforço que apliquei na defesa deste homem abandonado e desprezado. Acompanhei, durante largo tempo, o seu processo sob o só estímulo do cumprimento do meu dever, e sem que tivesse tido jamais um gesto ou uma palavra de agradecimento.
Não julgue, bacharel Oswald de Andrade, que sou exceção na corte desinteressada dos advogados. Grande é o número de bacharéis medíocres de inteligência, mas superiores pela nobreza dos sentimentos de fraternidade que lhe inundam os corações generosos. Nos juízos criminais, desprezados pela curiosidade humana – que só se desperta por ocasião das grandes tragédias que repercutem nas colunas escandalosas dos jornais –, modestos e pequeninos advogados labutam, sem vaidade, sem anúncio, e sem esperança, em prol de pessoas deserdadas e fracas que a sociedade rica e a grande literatura esqueceram e desprezaram.
Não sei se o estilo forense, pesado, monótono, insosso e soporífero pode ser vencido pela ânsia de justiça que o sr. diz habitar permanentemente na sua alma de eleição. Se a prosa sensaborona destas 8 páginas datilografadas de um bacharel leguleio não lhe apavorar a sensibilidade realista e forte de artista eminente e ilustre, que o sr. tem sido sempre, verá, pela leitura desta aguada e vulgar literatura forense, que um bacharel, como o sr., para ter oportunidades de defender homens deserdados e fracos, se fez advogado, podendo, assim, dizer frequentemente, aos juízes do Brasil que os “homens de bem e de consciência equilibrada” não podem deixar de sentir “justa indignação… ante uma organização judiciária que só permite defesas brilhantes e eficazes quando o acusado tem com que fazer um policial atrevido engolir a injúria que lhe cai dos lábios, quando encontra em face de si um pobre diabo como Abdalla Capas: ébrio, desordeiro e ladrão”.
Quando, assim, comparo o fulgor da sua inteligência com a opacidade do meu espírito, não posso deixar de lamentar que os deserdados e fracos do Brasil não tenham podido contar, nas audiências judiciárias, com a flama vingadora de sua palavra e o vigor incoercível de sua ação para reivindicar os direitos deles tão frequentemente postergados pelos homens egoístas, opressores e desalmados desta “sociedade terrorista” que o capitalismo usurário e dominador construiu no seio da própria civilização cristã.
Confiando em que, apesar da sua notória irreverência, acolha com superior generosidade esta resposta ao seu “Telefonema”, que lhe manda um bacharel-advogado cuja existência o sr., talvez, ignorava até esta data, peço-lhe que receba, ao menos com simpatia humana, o aperto de mão que lhe envia o colega, por assim dizer anônimo.
Av. Nilo Peçanha, 26 – 7º
Sala 714 – D.F.
[1] N.S.: termo em latim que significa por lei, oficialmente.
Acervo Sobral Pinto/IMS.