Lisboa, 22 de novembro de 1967

Desculpe a intimidade, dona Helena, mas…

Mamãe,

Sei perfeitamente os aborrecimentos e os transtornos que já lhe estou dando. Por minha vontade, creia, jamais viria per­turbar ainda mais a sua vida e a do doutor Otto, isto é, do papai. Tenho certeza, porém, de que muito breve teremos estabelecido melhores relações e desde já lhe prometo ser o mais bem-comportado possível enquanto tivermos que viver nesta estreita intimidade em que nos encontramos. Apesar da guerra no mundo, apesar da fo­me e de todas as calamidades, apesar dos pesares, ouvindo como ouço tanta gente dizer que a vida não vale a pena, a verdade é que preferi… viver. E tive a sorte de vir cair exatamente na sua fa­mília, dona Helena, isto é, mamãe. Sei quanto estão satisfeitos o André, o Bruno e a Cristiana, que não tiveram a sorte que eu te­nho. Pois eu, além de mãe adorável e de um pai bacana, vou ter três irmãos logo de saída – e que irmãos!, quase dois pais e uma mãe, o que temos de concordar que é o máximo. Na hipótese, pouco provável, de ser dentuça, sei de antemão pelo que aconteceu ao Bruno, que não faz mal, pois dona Helena saberá corrigir o meu sorriso para rivalizar com o mais lindo sorriso do mundo. Na ver­dade, já estou na maior alegria. Só saber que vou nascer, nascer!, já pensou que acontecimento? A única nuvem no meu espírito é saber que a senhora está preocupada e nervosa e que o clima na família não é muito favorável à minha chegada. Não tenham medo, sou brasileiro e vou dizendo logo que detesto Lisboa, já estou louco para “voltarmos” para o Brasil. Lembranças ao ABC[1] e vá escolhendo um D para mim, senão o Bruno me batiza mesmo de Godofredo…[2]

Seu caçulinha pele que vos adora

X

Arquivo Otto Lara Resende / Acervo IMS.

[1] N.S.: Os irmãos André, Bruno e Cristiana Lara Resende.
[2] N.S.: Godofredo de Lara Resende era tio de Otto Lara Resende. Na madrugada do nascimento de Heleninha, Otto pôs debaixo da porta do quarto dos filhos um bilhete: “Godofredo é uma linda menina”.