Com a proximidade do primeiro de maio, dia do aniversário de 37 anos de Otto Lara Resende, que, na ocasião, era adido cultural na Embaixada do Brasil, em Bruxelas, Hélio Pellegrino, então com 35 anos, escreve esta carta comovente e afetuosa em que reflete sobre a passagem do tempo e a maturidade.
Rio de Janeiro, 18 de abril de 1959
Meu excelente Otto,
Escrevo-lhe, depois do almoço, em plena tarde de verão, já que esse dadivoso calor carioca não mais se desprega da pele da cidade. Grudou-se a ela, a nós todos, e nos suga pachorrentamente, gruda e gordíssima sanguessuga que nos espreme os poros, os ossos, os poços.
Acabo de passar os olhos no suplemento literário do Jornal do Brasil, trincheira dos concretistas locais, e por aí fico sabendo o que é um poema transsintático – morou?[1] O poema transsintático, meu velho Otto, que vais fazer anos no próximo 1º de maio, o poema transsintático é, antes de mais nada, um forte. Como são fortes o sertanejo de Euclides da Cunha e as razões da juventude que nós metodicamente estamos a perder. Claro, há que haver compensações, como essa sua, de ter filhos, e como essa minha, de também tê-los, e de nos apegarmos a eles, porque já podemos ter filhos, porque já conquistamos a perspectiva paterna, aquela célebre dimensão que falta aos poemas transsintáticos e outros produtos das mais recentes gerações.
Sei que você me entende, velho Otto, sei que a sua linguagem não é transsintática, como a dos jovens muito jovens – jovens somos nós, porra! – sei que, à medida que o tempo passa, perdemos um pouco o pudor de sofrer reconhecendo que sofremos, e nos pomos humildes como pequenas mulas carregadas de fardos, diante do crepúsculo, e nós podemos dizer, bufando através de nossas negras e úmidas narinas de burros – nascer dói, viver desonestiza e acabrunha, morrer é uma fotografia na parede – mas como… etc. etc. Isto me parece ser uma das fundamentais conquistas da maturidade; atingir a linguagem bíblica, onde estão expressos todos os problemas do mundo, presentes, passados e futuros, poder sofrer com dignidade, maestria e decência, poder comer quando se tem que comer, dormir quando é hora para isso, copular às quartas e sextas-feiras, tal seja o caso, e – ao fim, morrer, mesmo que seja a um dia assim, com um sol assim etc.[2] Acredito que todos, sem exceção, passamos todos os anos de nossa primeira e segunda juventude – isto é – até os trinta anos, rebelados contra a vida e contra o fato de termos nascido, raivando espumas contra o inexorável fado que nos arrojou ao mundo, sonhando o Éden, possessos por não tê-lo à mão, enraivecidos contra pai, mãe e irmãos, elaborando esquemas de reformas que nos darão de volta o Jardim das Delícias, e assim por diante. Marx, o barbudo, em última análise não passou e não passa de um eterno adolescente, safado da vida por ter sido posto ante o espetáculo do mundo, ávido por modelá-lo à imagem e semelhança do seu ressentimento – que sei eu? Está claro que, com isso, não vamos negar os movimentos progressivos da espécie, as lutas dos homens – e das mulheres! por um mundo melhor etc. etc. etc. Claro, o homem tem que se mexer, e progredir, ou regredir, ou morder, ou cuspir, ou saltar, ou cantar, ou morrer – pouco importa. O importante é que ele se mexa, e caminhe. Apenas, meu velho e caro Otto, que esse movimento não seja o espasmo de um possesso, nem a baba do criminoso, nem a saliva da hidrofobia, mas uma aceitação – a-c-e-i-t-a-ç-ã-o – da condição humana, um assumir o exílio que é nascer, um estar pregado à cruz sem caretas sentimentais e esgares para infundir piedade, uma crucifixão viril, com gemidos de dor, sem dúvida, mas sem maiores ressentimentos. A aventura humana é esta, senhores, les jeux sont faits, [3] não há muito o que reclamar, se bem que, às vezes, haja tudo por reclamar.
Não sei se estou sendo claro com toda esta arenga lírico-filosófica, mas sei que você me entende. Amadurecer é perder o orgulho, meu caro Otto. E perder o orgulho é poder ser pai. Com furiosa doçura, minuciosa humildade, de chinelos, para não acordar o vizinho ou o filho que dorme, no quarto ao lado. Amadurecer – isto é, fazer 37 anos dignos, como você os vai fazer – é poder falar aos seus filhos do seu padrinho Jackson de Figueiredo, que morreu quando você agora nasce, fazendo anos. Amadurecer, por fim, é descobrir a gratuidade do mundo, a independência dele – vide carta-prefácio ao livro O encontro marcado, do festejado escritor Fernando Sabino – é poder dizer a alguém, a um filho, por exemplo: “Veja meu filho, isto aqui é uma pera, é uma pera, é uma rosa, é uma pera, é uma pera”.[4] Ah! velho Habacuc, me abraço a você e choro doce, pelos teus 37 anos, por tudo o que você sofreu até hoje, por tuas alegrias e perplexidades, por teus remorsos, pela tua asma, pela tua tosse, pelos teus ossos e tendões, pelos teus camelos, pelas tuas novilhas, pela tua tenda árabe de trabalho, pela tua família, pelo teu aparelho de barbear, pelo teu pente, pelo Nicolai Fikoff[5] que conheces e de que gostas e também eu gosto! – por tudo isso te saúdo, e te estendo minha mão através dos mares, e te dou um comovido e viril aperto de mão. E você o sabe – se choro por ti, choro por mim, pelos meus 37 (cinco) anos, por tudo isso é que é a minha, a tua, a nossa vida, por tudo choro, comovido e feliz, porque a vida é assim mesmo, porque a pera é uma pera, é uma pera, é uma pera, porque você é bom e digno, porque você está de pé, vivendo de pé, porque você tem um romance já escrito de que eu – tenho certeza – vou gostar muitíssimo, porque você deverá, na noite do seu “níver”, estar tomando vinho com o Fernando Sabino, ao pé da lareira familiar – o fogo do lar – por tudo isso, velho Habacuc, eu te saúdo, com saudade e carinho, com carinho e saudade que só podem sentir os maduros, os simples de coração, os bíblicos, os mendigos aos quais está fechado o acesso ao poema transsintático, mas que são capazes de outros acessos, como este que acabo de ter, de pura e cálida amizade por você. Um abraço ao Sabino, ao movimentado, ao lépido Sabino, um abraço para a Ana Beatriz, um abraço para a comadre Helena, uma pera para cada um de seus filhos, um abraço para o Sebastião e para o Nicolai Fikoff – não se esqueça de lho transmitir. Me escreva, sua carta foi esplêndida, me escreva sem demora, que responderei logo.
Seu
Hélio.
Acervo Otto Lara Resende/IMS
[1] N.S.: Hélio Pellegrino se refere ao artigo “O poema transsintático”, publicado no “Suplemento Dominical” por ocasião da I Exposição Neoconcreta realizada no mam-Rio.
[2] N.S.: Alusão ao poema “In extremis”, de Olavo Bilac, que começa com os versos “Nunca morrer assim! Nunca morrer num dia/Assim! de um sol assim!”.
[3] N.S.: Expressão francesa que significa “os dados estão lançados”.
[4] N.S.: Referência ao famoso verso do poema “Sacred Emily”, de Gertrude Stein: “Rose is a rose is a rose is a rose”.
[5] N.S.: Nicolai Fikoff foi arquiteto responsável por diversos projetos, dentre os quais a Embaixada da Bélgica em Brasília e a casa de Otto Lara Resende, de quem era compadre.