Buenos Aires, 3 de maio de 1976

Chico,

Ando nervoso, ansioso, querendo que esse julgamento recomece de uma vez, querendo ganhar de goleada, 10 x 2, mas aceitando um 7 x 6 e não querendo nem pensar no contrário. Fico com os olhos grudados no telefone esperando um chamado de Brasília gritando “Ganhamos!”. Vai ser hoje, amanhã, quando? Vamos ver.

Nessa fulminante troca de cartas com amigos meus noutros países vai se formando um consenso: a atitude do Itamaraty querendo me punir por uma peça (Torquemada),[1] escrita e representada fora do Brasil, é intolerável, inaguentável. É o Itamaraty querendo exercer censura teatral fora do território brasileiro. Querendo desempenhar o papel de polícia internacional do teatro! Como o pessoal não está aceitando esse policiamento, então em vários lugares se está planejando, com urgência, fazer “leituras dramáticas” de textos meus, em sinal de protesto contra a censura diplomática. Me telefonou de Portugal uma pessoa amiga e disse que eles vão preparar a leitura da Lisa.[2] E insistiram que eu insistisse com você em mandar as músicas – especialmente a do Casal procura esposa,[3] que eles acham bacana. Você pode pegar o poema e rodopiar em cima, mudar e trastrocar. Acho que é bacana como poema, mas pra virar canção tem que mudar a letra. Mude à vontade. Mas veja se faz com urgência URGENTÍSSIMA, que aí eu mando pra lá pra eles lerem e cantarem. Nos Estados Unidos vão fazer leitura de Torquemada mesmo, que eu montei faz quatro anos da New York University, mas estou entusiasmado é com essa leitura portuguesa – pode muito bem ser que depois aproveitem pra montar a peça.

Fernando Peixoto me escreveu e disse que deu Lisa pra Maria Pompeu ler – parece que ela tem produção e estaria interessada em que ele dirigisse pra ela. Disse que depois me diz. Depois te digo.

Jane Spitfire[4] está bacaninha. Estou acabando de passar a limpo a cena em que ela fica presa, nuinha, na Sala Enterrada guardada por uma pantera lésbica… e consegue escapar com a Fórmula Mágica da Recuperação Econômica! Claro que a pantera ajuda, mas cobra em espécie…

Ciao.

Você não está sentindo que está baixando aquela inspiração avassaladora, irresistível e contumaz? Pois então: senta aí, pega o violão e manda bala (principalmente no Casal procura esposa, e nas outras também!).

Um abração do

Boal

Acervo Augusto Boal.

[1] N.S.: Escrita por Augusto Boal em 1971, a peça é, segundo o próprio dramaturgo, um “retrato” pessoal da tortura: “Torquemada conta minha vida na cela do presídio Tiradentes, tenta contar a vida do povo no imenso presídio em que transformaram o Brasil”.
[2] N.S.: Lisa, a mulher libertadora é uma adaptação de Lisístrata, de Aristófanes, feita por Augusto Boal. A peça nunca foi encenada.
[3] N.S.: Letra de Boal musicada por Chico Buarque para a peça Lisa, a mulher libertadora.
[4] N.S.: Jane Spitfire ou A deliciosa e sangrenta aventura latina de Jane Spitfire é um romance de espionagem satírico escrito por Augusto Boal em 1975, durante o exílio na Argentina. É inspirado nas histórias de espião famosas nas décadas de 1960 e 1970, como as de James Bond, de Ian Fleming.