Meu caro e velho Pajé,

Imagine você que recebi de presente uma caixa de papel de carta uma beleza, que eu enviaria gostosamente à madame Sévigné[1] de nossa época, se lhe soubesse o nome e endereço. Enfim, voilà une lettre! Às vezes dou comigo invejando você aí em Bruxelas ou o ve­nerando [Murilo] Rubião lá em Madri. Consolo-me do primeiro caso, lendo Baudelaire.– Ah, les belges! Para livrar-me das seduções espa­nholas é ainda mais fácil; enquanto mandar na Espanha o manganão.[2]

Hoje está chovendo como o diabo mas tem feito sol e, no meio das obrigações todas, sempre acho um tempinho para dar umas raquetadas na praia ou ouvir o Millôr, rindo-se de feliz, a meter o pau na vida. Quanto ao truco, continua mais ou menos semanalmente, com o Castejón,[3] o Mocorongo, Macoré e o Besta-Fera.[4] Este último anda a persuadir o penúltimo a ganhar uma fortuna como humorista radiofônico. Em vão.

O Autran Dourado publicou um livro chamado Nove his­tórias em grupo de três. Não sei por que obsessão, o título me faz lembrar aquele poema assim: “Ela colhia margaridas quando eu passei. As margaridas eram os corações de seus na­morados, que depois se transformavam em ostras e ela engolia em grupos de dez”.[5] Ele escreve histórias, eu penso ostras. Já li as três primeiras, muito bonitas.

Ainda em matéria de literatura: o Luiz Coelho[6] (às vezes dou gargalhadas lembrando o passado) publicou um bom livro de contos policiais: A morte no envelope. O outro Luís, o Martins,[7], revela-se um dos pais mais amorosos (ou co­rujas) pais do mundo com as crônicas de O futebol da madrugada. O Fritz Teixeira de Sales é um poeta de caráter na plaquete Geografia da violência. Quanto aos concretistas, estão cada dia mais sábios. Babilônia, Alexandria, Atenas, Bizâncio, Roma, Paris, Londres, Berlim são titica perto dos rapazes. Unreal! Mas é assim mesmo; só com o tempo é que vamos ficando igno­rantes. Falando sério, o Concretismo é, no plano intelectual, uma brilhante e dramática manifestação das mesmas causas que de­ram o fenômeno juventude transviada. Sublimação puríssima das mesmíssimas causas. São eles os duros (les durs) da arte. Os anticarlitos da arte contemporânea. Respondem agressivamente ao lirismo de um Chaplin ou de um Lorca. Por isso, levo a sério a ferocidade latente da juventude concretista.

O que se refere ao Brasil, tudo na mais absoluta normalidade: deputados se matando em Alagoas, oficiais do exército agredindo estudantes, oficiais do exército bombar­deando uma delegacia da polícia carioca, guerra latifundiária no Paraná, falta d’água, falta de carne, falta de transporte, os la­drões de sempre, a boa gente honesta de sempre, o verde das nossas matas se acabando, mas o lábaro estrelado sempre lá no alto. E é por isso que lhe envio o meu fraterno abraço com toda a minha esperança naquela palavra antipática que significa futuro.

Crônica “Notícias”, de Paulo Mendes Campos publicada no Diário Carioca, Rio de Janeiro, 30/10/1957. Arquivo Paulo Mendes Campos/ Acervo IMS.

[1] N.S.: Marie de Rabutin-Chantal (1626-1696), marquesa de Sévigné, escritora francesa que durante mais de trinta anos escreveu cartas, a maioria destinada à filha.
[2] N.S.: Referência ao general Francisco Franco, que governou a Espanha de 1939 a 1975.
[3] N.S.: João Batista Castejón Branco (1919-1985), jornalista mineiro, integrou as equipes de jornalismo do Diário de Notícias, Jornal do Brasil e Última Hora.
[4] Besta-Fera era o apelido de Hélio Pellegrino no grupo dos Quatro cavaleiros de um íntimo apocalipse, como chamou Otto Lara Resende ao quarteto de mineiros composto pelo próprio Otto, Paulo Mendes Campos, Fernando Sabino e Hélio Pellegrino.
[5] N.S.: Versos do poema de Carlos Drummond de Andrade intitulado “Registro civil”.
[6] N.S.: Luiz Lopes Coelho (1911-1975), advogado e contista, considerado o pioneiro da literatura policial brasileira.
[7] N.S.: Luís Martins (1907-1981). Poeta, romancista, cronista, ensaísta, memorialista e crítico de arte carioca.