Meu caro Otto,

Sei que você está de malas prontas, depois de dois anos e meio na Europa, para retornar ao Brasil, e assim eu não poderia deixar de adver­ti-lo nesta carta. As coisas aqui em nosso país mudaram muito e de repente; o fito desta é poupar-lhe um cho­que que até poderia desandar em uma espécie de neurose de situação. Eu não sei bem o que houve, mas o fato é que deu um negócio coletivo que torna as pessoas sempre insatisfeitas com aquilo que faziam habitualmente. É uma louca impressionante. Antes de mais nada, nem lhe passe pela cabeça perguntar a um marido pela mulher ou a uma mu­lher pelo marido. Houve uma troca geral. Sobre isso fica­mos conversados, mas se prepare também para outras diver­sas surpresas, de que lhe dou apenas alguns exemplos. Os velhos tomam novocaína furiosamente, enquanto os moços tomam coca-cola e cocaína. Velhotas irremissíveis trafegam de lambreta pelas avenidas da zona sul, enquanto os mais lindos brotinhos andam de óculos e estudam nas faculdades de filosofia. Ministros aprendem violão e escrevem em co­lunas sociais, diretores de graves órgãos da imprensa pra­ticam ganzá ou reco-reco, ao passo que os colunistas sociais tratam os problemas de saúde pública. Não há vedete do Teatro Recreio que não dê, pelo menos uma vez por mês, uma entrevista sobre música clássica e literatura inglesa. A música popular está a cargo dos melhores poetas do Brasil. Os milionários não soltam mais um vintém, mas em com­pensação os prontos fazem grandes farras. Investigadores de Polícia, ganhando dez mil mensais, gastam 150 mil, mas não há de ser nada, pois, por outro lado, sujeitos que estão se enchendo de dinheiro não pagam mais nem fogo na roupa. Grã-finos que eram capazes até de andar malvestidos, só para saírem nos jornais, hoje pedem pelo amor de Deus que os deixem em paz. Há muitos inte­lectuais que tocam bateria, e há bateristas que não dormem sem ler um pouco de Heidegger ou Burckhardt. O Exército, de que tanto se falava mal, hoje guarda a dignidade brasi­leira, não deixando que os entreguistas metam a mão no petróleo. Os violinistas agora cantam, os cantores fazem cor­retagens, o Escurinho faz o gol, o Quarentinha está jogando o fino, o Botafogo contratou para armar o time um crioulo que tocava gongo muito bem. Em matéria de modas, não há nada mais impossível. Como regra geral, as mulheres estão cada vez mais masculinizadas, enquanto as camisarias para homens exibem nas vitrinas aquelas roupas coloridís­simas que a Esther Williams usava nos filmes antigos da Metro. Deputados famosos por sua violência panfletária hoje escrevem sobre rosas. Os aviões nem sempre voam, os lota­ções voam sempre, outro dia apareceu uma vaca na minha rua.

Antônio Maria hoje é um magro e Vinicius de Moraes, o nosso bom Vinicius, um gordo. Esporte da moda é o boxe, apreciado sobretudo pelas damas. Os mais espalhafatosos doutrinadores das práticas democráticas são conhecidos na­zistas do Estado Novo. Os humoristas ficaram sérios de súbito, enquanto homens probos dormiram gravemente e acordaram palhaços. Gente rica não tem mais filho, por causa da inflação, mas as favelas estão cheias de crianças. A Polícia instalou por conta própria a pena de morte, fuzi­lando sem mais aquela[1] ladrões e malandros.

Está mesmo tudo virado de perna pro ar, e é de todo conveniente que você vá se acostumando. Os velhos acaba­ram com essa coisa de morrer, mas o enfarte come solto entre a gente moça. Há juízes que vivem no Jockey e há cavalos que vivem no palácio da Justiça. Quando alguém quer mostrar que uma coisa é boa ou bonita, diz que essa coisa é bárbara. Galanteio hoje se chama curra. O vinho nacional é bom, você poderia tomar algumas marcas sem perigo de dor de cabeça. Em matéria de televisão, não lhe digo nada, você verá com os seus olhos: piorou ainda mais. Há padres sem batina, mulas sem cabeça e generais de pi­jama. Há cães que têm medo de gato, gatos com medo de rato, e ratos (isso há demais e pertencem todos ao nosso set social) sem medo de ninguém. O parto agora (dizem elas) é uma delícia. Macaco velho já mete a mão em cumbuca. Mania também nova é estudar dicção: há pessoas que dizem as maiores besteiras do mundo com uma dicção linda. Mu­lher matando marido diminuiu bastante, ainda bem. Candi­datos à presidência da República há dois: um de São Paulo, que nasceu em Mato Grosso, e um aqui do Rio, que nasceu em Minas Gerais, aliás, em sua terra, a saudosa São João del Rei. Outro dia, um médico, amigo meu, foi nomeado na prefeitura para uma vaga de “bailarino letra i”. Em Niterói, me disseram que há ópio. O cardeal não quer que o Brasil reate relações comerciais com os países socialistas. Vício novo é homem público aparecer na televisão para ser xin­gado de todas as maneiras. Gostam. Você conhece o pintor Raimundo Nogueira, não é? Pois outro dia ele foi visto recusando um bife com fritas, alegando que tinha acabado de almoçar; mas confesso que foi só um instantinho, pois imediatamente pensou melhor e comeu o bife.

Bem, fico por aqui, de braços abertos, à sua espera. Agora, tem uma coisa: se você por acaso chegar num dia de sábado, vai me desculpar, meu velho, mas eu não posso ir ao cais, porque estarei jogando futebol. Ponta de lança.

Crônica de Paulo Mendes Campos publicada em Manchete, Rio de Janeiro, 15/08/1959. Arquivo Paulo Mendes Campos / Acervo IMS.

[1] N.S.: Sem cerimônia, inesperadamente, bruscamente.