Ilustre marechal,
Desde a mais tenra infância, descansei minhas inquietudes por saber da existência de um organismo criado por vossa sabedoria, chamado Serviço de Proteção aos Índios. Quando ainda muito jovem me via perdido sobre o convés de um naviozinho – Gurupy − em águas e terras baixas do Amazonas, pensava: se esta viagem não der certo, apelo para o general Rondon!
Quando mais tarde me meti em revoluções fracassadas, prisões injustas, fomes indisfarçáveis, emigrações efetivas; quando deitado num banco de praça pública imaginava achar uma carteira caída por descuido do bolso de algum milionário; quando conferia, com olhos atentos, a loteria grande do Uruguai, meus bilhetes sempre brancos; quando abria a seção do “Precisa-se” esperando um anúncio, sob medida, viesse me buscar num quarto de pensão obscuro para me levar à fortuna; quando me fatigava em descobrir um sistema rápido de comprar um apartamento no Rio, um terreno em Vitória, uma geladeira em Roma, raciocinava: se estas coisas fracassarem, há o Serviço me esperando, há o marechal Rondon que me salvará.
Os direitos que me assistem a depositar toda essa minha ingênua confiança em uma pessoa decorrem de minha pura ascendência guarani. Sim, senhor marechal! Meu avô “índio manso” (como eu) partiu docemente, com as mãos amarradas em cipó, das matas do rio Doce, como “voluntário” à guerra do Paraguai. Quando o conheci, muito velho, contou-me essa aventura com a mesma ternura como eu conto agora a que me passou pelos anos de 1935, engajado numa revolução que ia não sei para que lado, mas eu, de mãos amarradas em cipó, lá ia para a ilha Grande!
Meus tios, minha mãe, guardaram até o fim de seus dias a nostalgia da mata. Pensaram em termos indígenas. Sofriam primitivamente a queda de um pássaro, o nascimento de um sol e o chorar de um rio encaracolado. Eram, foram e somos aimorés, “Vis aimorés”, como tão caluniadamente nos chamou Gonçalves Dias (tio-avô de Lêdo Ivo). E passar de aimoré a attaché[1] de embaixada — compreenda, senhor marechal —, que a parábola é longa e alta demais. Vestir tweed inglês, beber uísque escocês, balbuciar francês, amar mulheres flamengas, admirar os lagos gelados da Suíça, e pensar em termos franceses, é muito sofrer.
Salvai-me, marechal! Salvai este índio manso que desde a mais tenra juventude tentou representar, sem resultados, o elemento esquecido da selva brasileira.
Recolhei-me, marechal! É este um momento de revisão de valores nacionais. Os que até agora têm se esforçado por manter à tona este selvagem começam a se cansar: noto no lirismo do Rubem [Braga] certa fadiga; na benevolência de Pedroso d’Horta ligeira inquietação; na materialíssima juventude de Luís Coelho, laivos de exaustão; no aventurismo de Carybé, resquícios de torpor; no são-vicentismo do Gibson, e no franciscanismo do Alvim, nuvens minúsculas de nervosismo; e na fraternidade do Sérgio, indícios insubmissos de cansaço!
É, pois, este um momento supremo, único. Mais algum tempo e este índio manso se enterra, ou pior que isto, se integra!
Devolvei-me, marechal, à selva. Integrai-me à tribo de meus avós. Remetei-me ao clã de meus antepassados. Enfiai-me pela cabeça uma camisola de algodão cru que cubra apenas as partes pudibundas e permiti, por intermédio de vosso generoso “serviço”, que eu possa pescar, caçar, ralar mandioca, e esquecer enfim que existe Sartre, Martine Carol, télé, fuzil de repetição, submarino atômico etc. O que desejo somente é ter uma palhoça à beira da lagoa azul e verde de Juparanã.
É o que espera de vós, vosso índio muito devotado
Newton Freitas
Paulo Mendes Campos. Diário Carioca, Rio de Janeiro, 10/07/1955. Arquivo Paulo Mendes Campos / Acervo IMS.
[1] N.S.: Adido.