[Rio de Janeiro], 17 de fevereiro de 1968

Em primeiro lugar queríamos saber se as verbas destina­das para a educação são distribuídas pelo senhor. Se não, esta carta deveria se dirigir ao presidente da República. A este não me dirijo por uma espécie de pudor, enquanto sin­to-me com mais direito de falar com o ministro da Educação por já ter sido estudante.

O senhor há de estranhar que uma simples escritora escre­va sobre um assunto tão complexo como o de verbas para educação — o que no caso significa abrir vagas para os excedentes. Mas o problema é tão grave e por vezes patético que mesmo a mim, não tendo ainda filhos em idade univer­sitária, me toca.

O MEC, visando evitar o problema do grande número de candidatos para poucas vagas, resolveu fazer constar nos editais de vestibular que os concursos seriam classificatórios, considerando aprovados apenas os primeiros colocados den­tro do número de vagas existentes. Esta medida impede qualquer ação judicial por parte dos que não são aproveita­dos, não impedindo no entanto que os alunos tenham o im­pulso de ir às ruas para reivindicar as vagas que lhes são negadas.

Senhor ministro ou senhor presidente: “excedentes” num país que ainda está em construção?! e que precisa com urgên­cia de homens e mulheres que o construam? Só deixar entrar nas Faculdades os que tirarem melhores notas é fugir com­pletamente ao problema. O senhor já foi estudante e sabe que nem sempre os alunos que tiraram as melhores notas terminam sendo os melhores profissionais, os mais capacita­dos para resolverem na vida real os grandes problemas que existem. E nem sempre quem tira as melhores notas e ocupa uma vaga tem pleno direito a ela. Eu mesma fui universitária e no vestibular classificaram-me entre os primeiros candi­datos. No entanto, por motivos que aqui não importam, nem sequer segui a profissão. Na verdade eu não tinha direito à vaga.

Não estou de modo algum entrando em seara alheia. Esta seara é de todos nós. E estou falando em nome de tantos que, simbolicamente, é como se o senhor chegasse à janela de seu gabinete de trabalho e visse embaixo uma multidão de rapazes e moças esperando seu veredicto.

Ser estudante é algo muito sério. É quando os ideais se formam, é quando mais se pensa num meio de ajudar o Brasil. Senhor ministro ou presidente da República, impedir que jovens entrem em universidades é um crime. Perdoe a violência da palavra. Mas é a palavra certa.

Se a verba para universidades é curta, obrigando a dimi­nuir o número de vagas, por que não submetem os estudan­tes, alguns meses antes do vestibular, a exames psicotécnicos, a testes vocacionais? Isso não só serviria de eliminatória para as faculdades, como ajudaria aos estudantes que estivessem em caminho errado de vocação. Esta ideia partiu de uma estudante.

Se o senhor soubesse do sacrifício que na maioria das vezes a família inteira faz para que um rapaz realize o seu sonho, o de estudar. Se soubesse da profunda e muitas ve­zes irreparável desilusão quando entra a palavra “exceden­te”. Falei com uma jovem que foi excedente, perguntei-lhe como se sentira. Respondeu que de repente se sentira de­sorientada e vazia, enquanto ao seu lado rapazes e moças, ao se saberem excedentes, ali mesmo começaram a chorar. E nem poderiam sair à rua para uma passeata de protesto por­que sabem que a polícia poderia espancá-los.[1]

O senhor sabe o preço dos livros para pré-vestibulares? São caríssimos, comprados à custa de grandes dificuldades, pagos em prestações. Para no fim terem sido inúteis?

Que estas páginas simbolizem uma passeata de protesto de rapazes e moças.

Clarice Lispector. Todas as crônicas. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 2018, pp. 77-78.

[1] Em 28 de março deste ano, no restaurante universitário Calabouço, o comandante da tropa da PM, aspirante Aloísio Raposo, atirou e matou com um tiro a queima roupa o estudante Edson Luís.