Rio de Janeiro, 25 de maio de 1869

Eis-me na corte há quatro dias, eu, pobre in­válido, que não podia chegar até a sala!… Que força, que mola estranha deu vida ao cadáver? Foi Deus. O Deus de Lázaro sustentou-me nesse instante em que a amizade acompanhou-me.

[…][1]

E custou-me bem aquele último abraço a bordo, à tarde, quando o vento do mar começava a trazer não sei que tristeza do frio das vagas, quando uma nova peregrinação de penitência começava.

Custou muito. Custou como agora, que eu estou lembrando-me do passado, do tempo em que eu sofri, mas no qual a cada dor, que me lacerava, tinha uma mão de amigo para apertar. Seis meses vividos na comunhão mais santa – na comunhão do pensamento –, seis meses em que a mi­nha cabeça desfalecida encontrava sempre um bom coração – onde repousar…

Lembram-se das noites de 30 de março e 1º de abril? Foi a afeição que me salvou.

Mas para que desfiar este rosário santo de sau­dades e gratidão? Falemos de viagem. Foi boa, ou antes sofrível. O vapor jogava horrivelmente, uma orquestra horrível de enjoados fazia-se ouvir nos beliches; acrescentando a isso o meu estado de fra­queza, terão ideia do que padeci durante a travessia. Mas as maiores provações deviam ficar para o fim. Às 11 horas do dia 21, percebi através das janelas da câmara os mastros dos navios ancorados no porto. Nisto resumiu-se toda a perspectiva da mi­nha viagem e da entrada nesta majestosa baía.

Só às duas horas pude sair, ser carregado de bordo para o trapiche. Que dores, meu Deus! Por ser muito longa a ponte do desembarque, tive de ir sobre uma carreta, para isso preparada pelo incan­sável doutor Rubino, até a rua. Aí entrei num carro, onde bebi quase durante duas horas as fezes do cálice.[2]

[…][3]

Agora resumamos os últimos fatos. Estou na rua do Silva Manoel, número 3, em casa do meu bom amigo Luiz Cornélio, onde não me têm faltado uma verdadeira família e as melhores pro­vas de boa amizade.

Os médicos sondaram a ferida e decidiram que o pé se podia conservar. O estado do peito é me­lhor. Não tenho tosse e já durmo sobre o lado es­querdo. O pé não teve novidade, à excepção do ab­cesso, que de novo veio a furo, e que eu mesmo abri.

Eis o que eu vejo, mas tudo pode ser artificial; talvez que uma excitação nervosa, uma vida fictícia me anime ainda, porém me abandone em breve.

Meus amigos, agora, adeus! Se o braço tivesse força, longa seria esta carta; mas, se o meu coração não cansa de os estimar, a minha mão desfalecida me diz que cesse de escrever…

Castro Alves. Obras completas. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1921, pp. 453-455.

[1] N.S.: Trecho suprimido na edição-base.
[2] N.S.: A palavra “fezes” vem do latim “faex, faecis”, que significa “sedimento, resíduo” e, mais especificamente “borra de vinho”. “Beber um cálice até as fezes” significa beber todo o seu conteúdo líquido.  Em sentido figurado, significa encarar uma situação difícil ou dolorosa até o fim.
[3] N.S.: Trecho suprimido na edição-base.