Carta aos amigos de São Paulo
Apesar dos cuidados que lhe dispensaram os amigos paulistas, Castro Alves precisou viajar ao Rio de Janeiro para se tratar de uma ferida no pé causada por um tiro de espingarda durante uma caçada nos campos do bairro do Brás, em São Paulo. Na capital carioca, foi hóspede do amigo Luiz Cornélio dos Santos, mas, sem sucesso no tratamento, teria o pé amputado em junho de 1869.
Rio de Janeiro, 25 de maio de 1869
Eis-me na corte há quatro dias, eu, pobre inválido, que não podia chegar até a sala!… Que força, que mola estranha deu vida ao cadáver? Foi Deus. O Deus de Lázaro sustentou-me nesse instante em que a amizade acompanhou-me.
[…][1]
E custou-me bem aquele último abraço a bordo, à tarde, quando o vento do mar começava a trazer não sei que tristeza do frio das vagas, quando uma nova peregrinação de penitência começava.
Custou muito. Custou como agora, que eu estou lembrando-me do passado, do tempo em que eu sofri, mas no qual a cada dor, que me lacerava, tinha uma mão de amigo para apertar. Seis meses vividos na comunhão mais santa – na comunhão do pensamento –, seis meses em que a minha cabeça desfalecida encontrava sempre um bom coração – onde repousar…
Lembram-se das noites de 30 de março e 1º de abril? Foi a afeição que me salvou.
Mas para que desfiar este rosário santo de saudades e gratidão? Falemos de viagem. Foi boa, ou antes sofrível. O vapor jogava horrivelmente, uma orquestra horrível de enjoados fazia-se ouvir nos beliches; acrescentando a isso o meu estado de fraqueza, terão ideia do que padeci durante a travessia. Mas as maiores provações deviam ficar para o fim. Às 11 horas do dia 21, percebi através das janelas da câmara os mastros dos navios ancorados no porto. Nisto resumiu-se toda a perspectiva da minha viagem e da entrada nesta majestosa baía.
Só às duas horas pude sair, ser carregado de bordo para o trapiche. Que dores, meu Deus! Por ser muito longa a ponte do desembarque, tive de ir sobre uma carreta, para isso preparada pelo incansável doutor Rubino, até a rua. Aí entrei num carro, onde bebi quase durante duas horas as fezes do cálice.[2]
[…][3]
Agora resumamos os últimos fatos. Estou na rua do Silva Manoel, número 3, em casa do meu bom amigo Luiz Cornélio, onde não me têm faltado uma verdadeira família e as melhores provas de boa amizade.
Os médicos sondaram a ferida e decidiram que o pé se podia conservar. O estado do peito é melhor. Não tenho tosse e já durmo sobre o lado esquerdo. O pé não teve novidade, à excepção do abcesso, que de novo veio a furo, e que eu mesmo abri.
Eis o que eu vejo, mas tudo pode ser artificial; talvez que uma excitação nervosa, uma vida fictícia me anime ainda, porém me abandone em breve.
Meus amigos, agora, adeus! Se o braço tivesse força, longa seria esta carta; mas, se o meu coração não cansa de os estimar, a minha mão desfalecida me diz que cesse de escrever…
Castro Alves. Obras completas. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1921, pp. 453-455.
[1] N.S.: Trecho suprimido na edição-base.
[2] N.S.: A palavra “fezes” vem do latim “faex, faecis”, que significa “sedimento, resíduo” e, mais especificamente “borra de vinho”. “Beber um cálice até as fezes” significa beber todo o seu conteúdo líquido. Em sentido figurado, significa encarar uma situação difícil ou dolorosa até o fim.
[3] N.S.: Trecho suprimido na edição-base.