Chame-me vossa dor
Joaquim Nabuco defendia o ingresso de Artur Jaceguai, herói da Guerra do Paraguai, na Academia Brasileira de Letras. Jaceguai, no entanto, relutava em se candidatar por não se considerar um homem de letras. Em 1907, terminou por entrar para a Casa de Machado de Assis com um discurso famoso, em que não fazia referência ao antecessor, Teixeira de Melo, autor de Sombras e sonhos, de 1858, poeta da geração romântica de Casimiro de Abreu e Luís Delfino.
Londres, 8 de outubro de 1904
Meu caro Machado,
Há tempos recebi a sua boa carta sobre a Sentença, carta verdadeiramente primorosa e uma das que mais vezes hei de reler, quando tiver tempo para voltar ao passado e viver a vida das recordações. Por enquanto sou um escravo da atualidade que passa, e cada dia a tarefa que ela me dá parece calculada para me impedir de olhar para os lados, para o passado e para o futuro. Mas que vivacidade, que ligeireza, que doçura, que benevolência a do seu espírito, eu ia dizendo que beatitude! Você pode cultivar a vesícula do fel para a sua filosofia social, em seus romances, mas suas cartas o traem, você não é somente um homem feliz, vive na beatitude, como convém a um papa, e papa de uma época de fé, como a que hoje aí se tem na Academia. Agora não vá dizer que o ofendi e o acusei de hipocrisia, chamando-o de feliz.
A propósito de papa vou contar-lhe um sonho que tive há tempos. Via-me em Roma, no Vaticano, e quando me aproximei do trono estava nele uma mulher, com rosto de madona, cercada dos cardeais em toda pompa. Não sabendo o tratamento que devia dar à papisa, perguntei-lhe como a devia chamar, e ela respondeu-me: “Chame-me vossa dor.” Vossa dor! Não seria um tratamento mais sugestivo para a encarnação da Igreja do que vossa santidade, ou vossa beatitude? Para a encarnação viva de qualquer ideal? Não é da Igreja a mais bela das imagens sobre o nosso mundo: “Este vale de lágrimas?” Confesso-lhe que, acordado, nunca me teria ocorrido semelhante resposta: “Chame-me vossa dor.”
Quer eu deva também chamá-lo vossa beatitude ou vossa dor, aceite, meu caro amigo, meus sinceros agradecimentos pelas bondades largamente derramadas em sua carta. Não estou certo de que não teríamos perdido tudo sem o esforço que fiz para coligir e deduzir a nossa prova, e por isso me vou desvanecendo de ter reivindicado a melhor parte para nós da divisão feita pelo Árbitro. Não foi uma partida vencida, foi uma partida empatada, e isto, quando o outro jogador era a Inglaterra, é por certo meia vitória. Você um dia ouvirá mais sobre este assunto.
E a nova eleição? Não falo da eleição do futuro presidente, da qual parece já se estar tratando aí, mas da eleição do novo acadêmico. O [Sousa] Bandeira escreveu-me, e eu teria prazer em dar-lhe o meu voto, mas o meu voto é seu, você aí é quem vota por mim. Eu pensei que o Jaceguai desta vez se apresentaria. Ele, porém, achou mais fácil passar Humaitá do que as baterias encobertas do nosso reduto. Quais são essas baterias? A do Garnier lhe daria uma salva de… quantos tiros? Onde estão as outras? Eu nada sei, mas se ele for candidato, meu voto é dele, pela razão que fui eu quem lhe sugeri o ano passado a ideia. Você terá uma carta minha dizendo que ele não se apresentaria contra o Quintino [Bocaiúva]. Não sei por que o Quintino não foi membro fundador. E seguramente estranhei essa anomalia na Revista, anomalia tanto maior quanto o nosso criador era grande entusiasta do Quintino. Agora a entrada do Quintino não tem mais razão de ser, porque pareceria que ele adquiriu título depois da fundação, quando o tinha antes de quase todos os fundadores. A exclusão dele é, pois, um fato consumado, como seria a do Ferreira de Araújo, se vivesse, como é a do Ramiz [Galvão], a do Capistrano [de Abreu], que não quiseram. Se o Quintino não recusou, supõe-se que recusou, fica assentado que recusou. Podemos declará-lo; não podemos confessar que o esquecemos. Se, entretanto, ele se apresentar, julgo melhor esperar outra vaga para a combinação e eleger dois ao mesmo tempo. Eu acho bom dilatar sempre o prazo das eleições, porque no intervalo ou morre algum dos candidatos mais difíceis de preterir ou há outra vaga. A minha teoria já lhe disse, devemos fazer entrar para a Academia as superioridades do país. A Academia formou-se de homens na maior parte novos, é preciso agora graduar o acesso. Os novos podem esperar, ganham em esperar, entrarão depois por aclamação, em vez de entrarem agora por simpatias pessoais ou por serem de alguma coterie.[1] A Marinha não está representada no nosso grêmio, nem o Exército, nem o clero, nem as artes, é preciso introduzir as notabilidades dessas vocações que também cultivem as letras. E as grandes individualidades também. Assim o J. C. Rodrigues, o redator do Novo Mundo, o chefe do Jornal do Commercio, que neste momento está colecionando uma grande livraria relativa ao Brasil, e o nosso Carvalho Monteiro, de Lisboa? A este, o Mecenas, você poderia dar o voto de Horácio. É verdade que você é Horácio, mas que ele nada lhe deu, ainda assim você consagrava o tipo de Mecenas etc. etc. etc. Com o Jaceguai entrava a glória para a Academia. É verdade que ele nenhuma afinidade tinha com o Martins Júnior, mas a cadeira ainda está vaga − é a cadeira de Taunay, e patrono [Francisco] Otaviano, e desses dois o Jaceguai seria o substituto indicado por eles mesmos.
Nas minhas cartas você achará o compromisso que tomei para a eleição do Assis Brasil. Não sei se este será candidato. Não o será sem o seu concurso, você então decida por mim sem prejuízo do Jaceguai. Em uma palavra, você é o guarda da minha consciência literária, ausente do prélio como me acho.
Você compreenderá agora por que tardei tanto em responder-lhe, era-me preciso escrever uma nova memória, e tenho horror hoje às memórias. Estou nos últimos dias do Graça Aranha conosco. Por maior que seja o vazio que ele vai deixar, não quisera prolongar a ansiedade de vocês todos aí depois de uma separação de mais de cinco anos. Vai haver lágrimas de alegria aí; eu estou cá e lá. Trouxe-o desconhecido do país, restituo-o glorioso, esperando que todos terão o mesmo orgulho dele aí que eu tenho, a mesma certeza que dora em diante ele é quem mais pode fazer pelo brilho e nome das nossas letras. Ele o apresentará a um grande amigo que eu novamente tenho aí, o ministro russo, conde Prozor, tradutor de Ibsen. A condessa Prozor é também uma intelectual da primeira ordem.
Adeus, meu caro amigo, muitas saudades a todos da nossa pequena roda e um afetuossíssimo abraço do todo seu
Joaquim Nabuco
Correspondência Machado de Assis & Joaquim Nabuco. Organização de Graça Aranha. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras/Topbooks, 2003, pp. 122-125.
[1] N.S.: Grupinho, igrejinha.