Londres, 8 de outubro de 1904

Meu caro Machado,

Há tempos recebi a sua boa carta sobre a Sentença, carta verdadeiramente primorosa e uma das que mais vezes hei de reler, quando tiver tempo para voltar ao passado e viver a vida das recordações. Por enquanto sou um escravo da atualidade que passa, e cada dia a tarefa que ela me dá parece calculada para me impedir de olhar para os lados, para o passado e para o futuro. Mas que vivacidade, que ligeireza, que doçura, que be­nevolência a do seu espírito, eu ia dizendo que beatitude! Você pode cultivar a vesícula do fel para a sua filosofia social, em seus romances, mas suas cartas o traem, você não é somente um homem feliz, vive na beatitude, como convém a um papa, e papa de uma época de fé, como a que hoje aí se tem na Acade­mia. Agora não vá dizer que o ofendi e o acusei de hipocrisia, chamando-o de feliz.

A propósito de papa vou contar-lhe um sonho que tive há tempos. Via-me em Roma, no Vaticano, e quando me aproxi­mei do trono estava nele uma mulher, com rosto de madona, cercada dos cardeais em toda pompa. Não sabendo o tratamen­to que devia dar à papisa, perguntei-lhe como a devia chamar, e ela respondeu-me: “Chame-me vossa dor.” Vossa dor! Não se­ria um tratamento mais sugestivo para a encarnação da Igreja do que vossa santidade, ou vossa beatitude? Para a encarnação viva de qualquer ideal? Não é da Igreja a mais bela das imagens sobre o nosso mundo: “Este vale de lágrimas?” Confesso-lhe que, acordado, nunca me teria ocorrido semelhante resposta: “Chame-me vossa dor.”

Quer eu deva também chamá-lo vossa beatitude ou vossa dor, aceite, meu caro amigo, meus sinceros agradecimentos pe­las bondades largamente derramadas em sua carta. Não estou certo de que não teríamos perdido tudo sem o esforço que fiz para coligir e deduzir a nossa prova, e por isso me vou desvanecendo de ter reivindicado a melhor parte para nós da divisão feita pelo Árbitro. Não foi uma partida vencida, foi uma partida empatada, e isto, quando o outro jogador era a Inglaterra, é por certo meia vitória. Você um dia ouvirá mais sobre este assunto.

E a nova eleição? Não falo da eleição do futuro presidente, da qual parece já se estar tratando aí, mas da eleição do novo acadêmico. O [Sousa] Bandeira escreveu-me, e eu teria prazer em dar-lhe o meu voto, mas o meu voto é seu, você aí é quem vota por mim. Eu pensei que o Jaceguai desta vez se apresentaria. Ele, porém, achou mais fácil passar Humaitá do que as baterias en­cobertas do nosso reduto. Quais são essas baterias? A do Garnier lhe daria uma salva de… quantos tiros? Onde estão as outras? Eu nada sei, mas se ele for candidato, meu voto é dele, pela razão que fui eu quem lhe sugeri o ano passado a ideia. Você terá uma carta minha dizendo que ele não se apresentaria contra o Quintino [Bocaiúva]. Não sei por que o Quintino não foi membro funda­dor. E seguramente estranhei essa anomalia na Revista, ano­malia tanto maior quanto o nosso criador era grande entusiasta do Quintino. Agora a entrada do Quintino não tem mais razão de ser, porque pareceria que ele adquiriu título depois da fun­dação, quando o tinha antes de quase todos os fundadores. A exclusão dele é, pois, um fato consumado, como seria a do Fer­reira de Araújo, se vivesse, como é a do Ramiz [Galvão], a do Capistrano [de Abreu], que não quiseram. Se o Quintino não recusou, supõe-se que recusou, fica assentado que recusou. Podemos declará-lo; não podemos confessar que o esquecemos. Se, entretanto, ele se apresentar, julgo melhor esperar outra vaga para a combinação e eleger dois ao mesmo tempo. Eu acho bom dilatar sempre o prazo das eleições, porque no intervalo ou morre algum dos candidatos mais difíceis de preterir ou há outra vaga. A mi­nha teoria já lhe disse, devemos fazer entrar para a Academia as superioridades do país. A Academia formou-se de homens na maior parte novos, é preciso agora graduar o acesso. Os novos podem esperar, ganham em esperar, entrarão depois por aclamação, em vez de entrarem agora por simpatias pessoais ou por serem de alguma coterie.[1] A Marinha não está representada no nosso grêmio, nem o Exército, nem o clero, nem as artes, é preciso introduzir as notabilidades dessas vo­cações que também cultivem as letras. E as grandes individualidades também. Assim o J. C. Rodrigues, o redator do Novo Mundo, o chefe do Jornal do Commercio, que neste momento está colecionando uma grande livraria relativa ao Brasil, e o nosso Carvalho Monteiro, de Lisboa? A este, o Mecenas, você poderia dar o voto de Horácio. É verdade que você é Horácio, mas que ele nada lhe deu, ainda assim você consagrava o tipo de Mecenas etc. etc. etc. Com o Jaceguai entrava a glória para a Acade­mia. É verdade que ele nenhuma afinidade tinha com o Martins Júnior, mas a cadeira ainda está vaga − é a cadeira de Taunay, e patrono [Francisco] Otaviano, e desses dois o Jaceguai seria o substituto indicado por eles mesmos.

Nas minhas cartas você achará o compromisso que tomei para a eleição do Assis Brasil. Não sei se este será candidato. Não o será sem o seu concurso, você então decida por mim sem prejuízo do Jaceguai. Em uma palavra, você é o guarda da minha consciência lite­rária, ausente do prélio como me acho.

Você compreenderá agora por que tardei tanto em responder-lhe, era-me preciso escrever uma nova memória, e tenho horror hoje às memórias. Estou nos últimos dias do Graça Aranha conos­co. Por maior que seja o vazio que ele vai deixar, não quisera pro­longar a ansiedade de vocês todos aí depois de uma separação de mais de cinco anos. Vai haver lágrimas de alegria aí; eu estou cá e lá. Trouxe-o desconhecido do país, restituo-o glorioso, esperando que todos terão o mesmo orgulho dele aí que eu tenho, a mesma certeza que dora em diante ele é quem mais pode fazer pelo brilho e nome das nossas letras. Ele o apresentará a um grande amigo que eu novamente tenho aí, o ministro russo, conde Prozor, tradutor de Ibsen. A condessa Prozor é também uma intelectual da primeira ordem.

Adeus, meu caro amigo, muitas saudades a todos da nossa pequena roda e um afetuossíssimo abraço do todo seu

Joaquim Nabuco

Correspondência Machado de Assis & Joaquim Nabuco. Organização de Graça Aranha. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras/Topbooks, 2003, pp. 122-125.

[1] N.S.: Grupinho, igrejinha.