São Paulo, 16 de fevereiro de 1942
Fernando Sabino,
Vou pegar esta segunda-feira de carnaval pra lhe responder mais longamente. Você já deve ter recebido um cartão meu a respeito do assunto que você me propôs. É que a sua carta respirava um tal desejo de saber logo o que eu imaginava sobre o problema que tocava imediatamente a prática de sua vida, que eu não quis deixar você numa espera mais longa. O assunto, aliás, é de uma complexidade enorme. Em resumo o que você me pergunta é o seguinte: sendo a arte um produto direto da insatisfação humana, o artista, para se preservar em sua integridade, tem que renegar toda e qualquer facilidade que lhe aparecer na vida prática? Não é isso mesmo que você quer saber? O que imagino é isto: você está decidido com grande honradez moral a ser artista, mas eis que, nos seus 18 anos, a vida agarrou você na esquina e lhe ofereceu um ótimo presente vital, que você julga ser a sua felicidade. E você está receoso de aceitar, temendo que isso venha a prejudicar o seu destino de artista. Só há uma resposta possível imediata: aceite o que a vida lhe oferece e experimente. Você, na sua discrição de primeira hora, não quis dizer logo com franqueza qual era o gênero de facilidade (repare que insisto em facilidade, evitando a palavra felicidade), se amor, se riqueza, deve ser uma destas duas. Podem ser também as duas juntas: amor sinceríssimo que acontece ser rico, noivado, casamento legal e vida arranjada, sem mais inquietações financeiras. Mesmo que seja assim, não hesito um segundo em responder que aceite.
Não há dúvida nenhuma que a arte tem entre os elementos que a constituem a insatisfação. A arte é filha da dor, dizem, e você repete na sua carta. Prefiro dizer insatisfação, que é mais dinâmico; e da insatisfação, a arte não é só filha, mas esposa, companheira cotidiana e mãe. O artista verdadeiro jamais estará satisfeito consigo mesmo nem com a obra de arte que produziu. Há satisfações momentâneas, está claro. E há, meu Deus! os satisfeitos… Mas você há de observar em toda a sua vida que os “satisfeitos” com sua missão e com as obras que realizam, nunca serão artistas “verdadeiros”: são medíocres, são francamente ruins. Quanto às satisfações momentâneas, embora quase nunca elas sejam completas, nada de mais psicologicamente lógico. Você, como artista, cumpriu entusiasticamente, sem fadiga, o seu dever, isto é, deu tudo o que tinha. A obra de arte está realizada com todas as forças de qualquer espécie que você tem. É natural que você não veja. A obra de arte é você inteirinho, e todas as suas possibilidades críticas a consideram excelente. Não use então modéstia falsa: se diga com lealdade que você considera a sua obra excelente. Ela o é, enquanto a você. E você sente então uma espécie natural de satisfação. Como artista você foi moral dando tudo o que tinha. A sua obra se identifica com você, pois que ela é tudo o que você é. Você há de necessariamente sentir a consciência tranquila e com isso uma espécie de satisfação, derivada desse equilíbrio relacional entre você e a sua obra. Mas desde o momento em que você tornar pública a sua obra e ela for viver independente de você, as insatisfações virão, e os desgostos. As incompreensões serão fatais. Os desvios ainda mais fatais, e isso desgosta prodigiosamente o artista. Ele não pode mais mandar na sua obra, ela adquiriu sua maioridade e principia fazendo estrepolias incríveis. O que eu tenho sofrido, com o Macunaíma, principalmente com ele, você nem pode imaginar… E, no entanto, se escrito em pleno estado de possessão (a primeira redação foi feita inteirinha em seis dias), em que eu não sofria nada no ímpeto sublime da criação, mas também nem podia pôr consciência na sublimidade em que estava pela extensão mesma desta sublimidade que me obnubilava qualquer estado de consciência analítica, o que posso lhe jurar é que Macunaíma foi detestavelmente doloroso pra mim. Nos momentos mais anedóticos, mais engraçados do entrecho, eu não deixava de sofrer pelo meu herói, sofrer a falta de organização moral dele (do brasileiro, que ele satiriza), de reprovar o que ele estava fazendo contra a minha vontade. E quando, no fim, Macunaíma, no ponto de se regenerar, fraqueja mais uma vez e prefere ir viver o brilho “inútil” das estrelas, meus olhos se encheram de lágrimas. Se encheram e se encherão sempre. Mas isso ainda não é nada, com o que foi depois, quando Macunaíma estava publicado e não tinha mais nada comigo. Tenho ouvido os maiores elogios ao meu livro — e isso é sempre agradável ao artista verdadeiro, porque não existe um só artista verdadeiro que não artefaça com a intenção de ser amado. Mas os pouquíssimos que refletiram sobre o livro: ou foram uns porque-me-ufano-do-meu-país que recusaram a sátira e continuaram muito satisfeitos da vida, ou foram os que só retiraram do livro um reforço, consciente de seu amoralismo… nacional. Mas agora veja bem: não imagine não que eu vou bancar o incompreendido e sustentar o valor crítico do meu livro! Eu tenho bastante saúde mental pra reconhecer que a vida é uma luta, e que nesse jogo do Macunaíma eu perdi de um a zero: eu errei. Macunaíma é uma “obra-prima” que falhou. Toca pra frente!
Você confundiu, como fazem todos, felicidade com facilidade. Eu desconfio, ainda não sei, pelos seus escritos, que você é católico, ou pelo menos, certamente de formação católica. Está bem, isso não trará a menor sombra, enquanto a mim, em nossas relações pessoais, seja você o que for. Eu também sou de formação católica, acredito vorazmente em Deus, e por maiores que sejam os meus descaminhos, sei que morrerei (se morte consciente) em estado católico. Mas é estranho como não tenho a menor religião, nisso em que a religião é uma religação, uma organização coletivizada das nossas relações e deveres pra com Deus. Respeito, não é bem respeito, acredito por demais na consciência alheia, pra tentar desmanchar a convicção alheia. Mas o que eu queria dizer é que, por isso mesmo de você estar catolicizado, você não podia ter empregado a palavra felicidade pro seu caso atual. Será tudo o que você quiser, um deslumbramento, um delírio sublime que você está prestes a conquistar, se não já conquistou. Mas felicidade não é não. Se você chegar a uma conceituação verdadeiramente filosófica do que seja felicidade, você perceberá que o sentido popular em que você empregou a palavra é defeituoso e até imoral. Imoral porque desvia o indivíduo da sua integridade, da sua destinação coletiva e mesmo individual. Coisa muito mais alta que uma facilidade momentânea ou mesmo permanente.
E aqui é que está o busílis: o difícil, o dificílimo, o tremendamente difícil é você, no convívio de sua facilidade (principalmente se for a riqueza), conservar a integridade moral do seu destino de artista. É difícil, porém não é impossível. De uma coisa eu tenho certeza: por mais que seja a facilidade (felicidade) que você conquistar, seja você artista, Hitler, Stalin, inventor, Getúlio ou ladrão, você jamais ficará satisfeito: há de querer mais. Nisto não há mal: é a marca divina do homem. O mal é que, embora buscando sempre aumentar insatisfeitamente a felicidade conquistada (isto é: um Ford nunca deixará de pretender o aumento de sua riqueza, às vezes até “desviando” a pretensão para a política, o amor, a esmola, o “altruísmo” etc.), o mal é que você, embora pretenda se aumentar, você principia agindo sorrateiramente como se estivesse satisfeito: é o conformismo. Esta é a cilada que o homem encontra cotidianamente em seu caminho, o conformismo. Ela principia já por ser fisiológica: é a lei da estabilização, a lei que eu chamo da “preguiça”, nós vivemos morrendo. Quando o princípio moral verdadeiro é justo o contrário: nós devemos viver sempre nascendo: tudo deve ser sempre objeto de aprimoramento pessoal e a busca da perfeição. Não hesito em afirmar: toda facilidade, toda felicidade é desmoralizante. Mas então como conciliar a minha até intimação de você aceitar a felicidade que a vida está lhe oferecendo e esta convicção de que a felicidade é desmoralizadora?
É simples, meu irmãozinho, embora seja difícil. É você não perder jamais de consciência que a sua experiência de felicidade deve ser também um objeto de aprimoramento pessoal. A felicidade, o prazer, a facilidade também é uma prova por que a gente passa. Nisso a simbólica da criação é admirável. Deus não sujeitou Adão a sete provas de infelicidade, matar dragões nem atravessar o mar a nado: sujeitou-o apenas a uma prova de felicidade, o jardim das delícias. Mas Adão, insatisfeito, rockfellerizou-se, quis também a maçã… E se “brincou”. No seu caso particular de artista: o operário, cada vez que principia trabalhando, não reverifica os seus instrumentos de trabalho? Não afia a foice, não azeita a máquina? Você também precisa estar sempre alerta, pra que seu trabalho seja legítimo. Você precisa reverificar constantemente os seus instrumentos de trabalho. É difícil, a facilidade tende a esquecer isso, a sequestrar a ideia da gente se repensar e se reverificar em seus trabalhos. Mas há um jeito muito humano da gente consertar essa tendência sorrateira: a fixação de uma data… comemorativa da sua grandeza de homem e de artista. Fixe uma data anual para o seu retiro espiritual e faça isso no fim do ano, que é mais fácil e inesquecível. O que fiz este ano que passou? No que isso me acrescenta em minha obra ou a prejudica? O que preciso fazer este ano próximo? No que deva me completar? Afinal das contas estou lhe dizendo coisas banais, que, aos banais, parece estar cheirando a confessionário. Não será tão banal assim… a vida tem de ser, muito mais que um viver-se, um continuado repensar-se. E só isso lhe peço quase… paternalmente, meu Deus! Nossas idades são tão afastadas uma da outra! Não se deixe desleixadamente viver como a maioria infinita dos nossos artistas brasileiros. Como eles são pobres de humanidade!… Às vezes são riquíssimos de atividade e variedade vital: tudo lhes aconteceu, as mais diversas mulheres, todas as pobrezas, todas as riquezas, cem doenças difíceis, cem saúdes, cem poderes. No entanto nada disso lhes serviu para se tornarem um ser, um ser íntegro, completado em si mesmo e insolúvel. São macunaimáticos, se dissolvem nos seus atos, sem realizarem uma ação, que é continuidade. Não são homens, são água. Mas a gente tem vergonha de se repensar. Fazer exame de consciência, isso é “desvio” (ah, a psicanálise!…) próprio de meninotes e das frágeis mulheres. “Eu sou um espírito forte!”, e são os mais inexistentes dos espíritos…
Não é justo a gente se recusar uma facilidade que a vida nos ofereça, desde que essa facilidade seja justa. A felicidade no amor nem é apenas justa, é uma espécie de dever. Nem mesmo a riqueza deixa de ser justa. O difícil é você, em seguida, cumprir com os deveres humanos que essa facilidade lhe impõe. Mas se você estiver bem definido, bem conceituado e bem consciente dos seus deveres pra consigo e pra com os homens, você apenas tirará de suas facilidades mais uma força de aperfeiçoamento. Afinal das contas, Goethe não se perdeu. E Victor Hugo, nos dias de maior realização amorosa escreveu a “Tristesse d’Olympio”… E ainda existe esse mistério de “infelicidade me persegue” como dizia o samba. A verdade mais insolúvel é essa… Você já reparou num fim de festa de que você participou de corpo, e alma, apaixonadamente. Festa acabou e você sente um vazio inconsistente que não chega a doer, não chega a ser desilusão, não chega a ser nada de nitidamente qualificável: você apenas atinge uma noção vaga de mesquinhez. Tudo o que houve que foi bom, como que não foi bastante! Não recuse a felicidade. O momento há de vir em que você perceberá meio assustado que ela foi imensa e que não foi bastante.
Você na sua carta me pareceu que está um pouco místico a respeito da necessidade do sofrimento pessoal para a realização artística. Pelo menos você afirma peremptoriamente: “e essa realização, é inequívoco, que só o sofrimento é capaz de proporcionar”. Mas vejo assustado que estou no caminho de mais cinco páginas de datilografia! E também fico um bocado com medo das minhas cartas se tornarem pretensiosas, como se eu tivesse a veleidade de decidir de todos os problemas humanos. Não tenho. Estou apenas lhe dando, como falei desde a primeira carta, creio, o auxílio que pode derivar da minha experiência e do meu pensamento mais amadurecido. Não: a arte não é um sofrimento exatamente nem é só o sofrimento que a pode legitimamente proporcionar. O momento da criação é um prazer sublime, e estou completamente em desacordo com os que o consideram um parto. Nem posso compreender mesmo, essa assimilação da criação artística com o parto. Deriva certamente da semelhança objetiva, entre o filho e a obra de arte. O momento de criação é gostosíssimo, verdadeiramente aquela sublimidade de integração e de dadivosidade do ser, em que a gente fica na ejaculação sexual. É tão sublime mesmo, é tamanha a integração, que a gente não se pode ilhar num estado de consciência crítica e se analisar. O ser mais frágil do mundo, mais escravo, mais indefeso é o homem no momento da ejaculação: ele fica por completo inerme. Esse o momento da criação artística. O que sucede é que esse momento é rapidíssimo (como a ejaculação), dura alguns segundos. E logo a gente principia o trabalho mais penoso e principalmente muito mais inquieto de artefazer, corrigir, criticar, julgar, intencionalizar, dirigir a obra de arte, polir etc. etc., sacrificar coisas que gosta em proveito de uma significação funcional da obra de arte; que é mais importante que a gente, o diabo. Nisso é que vem muito sofrimento, muita fadiga, muita indecisão. Mas é estranho como neste trabalho longo, você constantemente se vê atirado de novo à volúpia da criação, é incrível como você “inventa”. Parece que você está gélido, dirigindo friamente o trabalho de aperfeiçoamento e, no entanto, até no desistir voluntariamente de uma coisa que você gosta, em proveito de uma finalidade maior, que seja mesmo apenas o equilíbrio formal da obra de arte, mesmo nesse sacrifício, você retorna a um estado ativo de poesia, você pratica uma ejaculação, você está em plena volúpia criadora. É preciso ser mais humilde, ainda aqui, mais operário; e não mistificar por demais essa história da arte ser filha da dor. É dolorido, é penoso, é fatigante, é sobretudo inquieto; inquietante e insatisfatório. Mas é gostoso também, é másculo, é, sobretudo, de uma grande dignidade. A arte é “uma tortura”, como você diz? Apenas eu lhe pergunto uma coisa: você conhece qualquer profissionalidade humana que, realizada com dignidade, não seja uma tortura também? É a vaidade do artista individualistizado que o leva ao seu atendite et videte si est dolor sicut dolor meus.[1] Isso é individualismo pretensioso. A tortura é de todos e se confunde com o que de fato seja viver humanamente. O que sucede é que a maioria dos seres (e também dos artistas) vegeta em vez de humanamente viver. E não estaremos por acaso insultando os vegetais?…
Será que estas digressões, escritas ao léu do pensamento e sem ordenação, lhe bastam? Se não bastarem continue discutindo, até você se fixar num estado de consciência suficiente pra organizar em você uma atitude coordenadora do seu trabalho futuro. Ainda havia o que comentar na sua carta, mas estou cansado. Eu aconselharia desde logo a você não se prender a equações muito nítidas e simplórias. Afinal das contas você, justamente por ser um intelectual, não pode se alimentar de provérbios; não se esqueça que os provérbios também são uma derivação da lei da preguiça, um viver morrendo. Por exemplo: no fim quase da sua carta, você me pergunta se a arte “paira acima e independente, dominando a vida e não sendo dominada por ela”. Isso é provérbio, é simplório por demais. Que a arte, sob certo ponto, paire acima da vida, inda é possível aceitar, porque se servindo de elementos estéticos (a beleza, o material transpositor, a crítica da vida etc.) ela nunca é a vida mesma, e nos oferece uma síntese nova dessa mesma vida. A arte não há dúvida nenhuma que é uma espécie de mentira, mas no sentido em que você diz ao enfermo que ele está melhor ou à criança que, se ela brincar com fogo, mija na cama. Você não mente com a intenção de enganar, mas justo na intenção de atingir um beneficiamento maior. Mas por tudo isto mesmo, a arte jamais é independente da vida: há interdependência insolúvel e irrecorrível, que faz com que nem a vida domine a arte nem esta àquela. Não desligue assim proverbialmente duas coisas que são a mesma coisa. Até como aspiração elas são a mesma coisa: pois tudo não aspira a uma vida melhor?…
Com um abraço do
Mário de Andrade
Mário de Andrade. Cartas a um jovem escritor. Rio de Janeiro: Record, 1981, pp. 27-37.
[1] N.S.: “Olhai e julgai se existe dor igual à minha dor”.