Rio [de Janeiro], 25 de abril de 1984
Querido Boal,
Acabo de receber sua carta, dizendo que você chega breve.
Hoje, no Brasil, vivemos uma noite especial, pois estão sendo votadas as Diretas no Congresso, e tudo pode acontecer. Multidões estão de plantão em todo o país. A votação vai pela noite.
Boal, tudo mudou nos planos do Theatro Municipal. Tatiana saiu. O Theatro Municipal volta-se só para a ópera, a Ópera Nacional. O João Caetano passa a ter um programa, digamos, “Escola-teatro de revista”. Uma espécie de Fame[2] caboclo. Aulas de tudo para formar atores de teatro musicado. Os três espetáculos mesclarão alunos e profissionais.
E não houve mais papo sobre o outro plano. Acho difícil que saia. “Não há dinheiro”, dizem todos. O momento político é confuso. Os governos de oposição estão na esfera.
Não te escrevi porque não tinha nada de concreto pra te dizer.
Para maio de [19]85 farei um filme sobre Zuzu Angel.[3] Fora disso, continuo com a Petra[4] lotando teatros de 1.100, 1.500 lugares: Belo Horizonte, Brasília, João Caetano (Rio). Agora São Paulo (no grande auditório). Devo ir com a peça até julho. Francamente, se o Fassbinder tivesse esperando um pouco pra morrer é possível que até nem se matasse… Estourar no Brasil…
Depois da Petra, vamos à Europa, dar um giro, Fernando [Torres] e eu.
Sei que você, quando quer, quer!
Ao chegar aqui, você sentirá a barra.
O Darcy Ribeiro, se você o conhece bem, talvez abrisse uma chance.
Espero que eu, ao acordar, as Diretas Já tenham sido aprovadas. O Congresso está cercado pelo Exército. Dizem que pra proteger as instituições. Deus nos acuda. Censura geral. Notícias só nos jornais. A mobilização popular é total e, se não passarem as Diretas Já o pau vai comer. O povo não vai voltar pra casa não: ninguém aguenta mais tanta corrupção e repressão. São vinte anos, Boal! Até já…
São duas horas da manhã. A televisão comunica diretamente do Congresso que a Ementa Diretas Já não passou. Deus nos salve! A madrugada saiu sem nenhuma notícia mais.
Manhã de 26/4. Vou pra São Paulo.
Não sabemos o que vai acontecer. Um beijo. E até breve.
Fernanda
Acervo Augusto Boal
Você pode ver o comentário de Fernanda Montenegro sobre a carta no vídeo abaixo:
[1] N.S.: Esta carta foi gravada pela atriz em vídeo exibido durante a exposição Meus caros amigos – Augusto Boal – Cartas do exílio, realizada no IMS em 2016.
[2] N.S.: Fame – The musical é uma peça de David De Silva, baseada no filme de 1980 dirigido por Alan Parker.
[3] N.S.: O projeto seria o primeiro filme dirigido por Walter Salles, mas não foi filmado.
[4] N.S.: As lágrimas amargas de Petra von Kant é uma peça de Rainer Werner Fassbinder, que a adaptou para o cinema em 1972. A montagem do Teatro dos Quatro dirigida por Celso Nunes, com Fernanda Montenegro no elenco, estreou no Rio de Janeiro em 1982.