Porto Alegre, 29 de outubro de 1974

Querida Lygia,

Alguém mandou ao meu filho um patinho recém-nascido. As crianças interessaram-se por ele nos primeiro dias, mas depois o esqueceram e o bichinho anda por aí tão órfão que todas as tardes se refugia no meu escritório e se aninha entre os meus desert boots[1] – e eu tenho de bater máquina com a atenção dividida entre o que escrevo e aquela coisa penugenta e solitária, cuidando para não machucar o patinho, que nem nome tem. Afora isso, tudo corre bem. Luis Fernando e Lucia andam pela Europa, comendo, vendo os grandes filmes que nossa censura proíbe, com­prando discos e livros. Dois gordos felizes! E merecem. São 4 da tarde. O Louis Armstrong canta um blue pela rádio da universidade. Continuo burro e atra­sado no segundo volume do Solo.[2] Louvado seja Deus! E com boa saúde. (idem). A família toda bem.

Mas eu lhe escrevo para dizer que ando com saudade dum papo contigo. Sim, e para te contar que achei teu conto sobre a bolha de sabão[3] uma joia. Li-o duas vezes. A primeira vez como o leitor de ficção que sou. A segunda, com olho de oficial do mesmo ofício. Repito, é uma joia. Como pôde essa menina de suéter verde que conheci em 1943 (sorry pela data!) chegar a esta altura. As meninas? Continuo a afirmar que foi o maior romance deste ano e de muitos outros. Fico assim com um or­gulho de tio quando leio ou ouço alguém dizer bem desse livro. Você chegou muito alto no seu ofício, e vai manter-se aí por muito tempo. E ninguém lhe deu uma mão forte, decisiva. God bless you! (Que vontade tenho de que Deus exista!) Vou voltar ao Solo. Estou empacado em Portugal. Feitiço do Salazar? Sei lá.

Bom, o patinho ama­relo vai entrando em cena. Vou preparar o ninho dele. Até qualquer hora.

Um abração do Erico.

Arquivo Lygia Fagundes Telles / Acervo IMS

[1] N.S.: Botas de design simples e resistente, geralmente usadas por soldados nas guerras.
[2] N.S.: Referência ao livro de memórias de Erico, Solo de clarineta, escrito em dois volumes. Erico Verissimo morreu antes de terminar o segundo volume, publicado postumamente, em 1976, com organização de Flávio Loureiro Chaves. Nele, o autor conta histórias de suas viagens à Europa e aos Estados Unidos.
[3] N.S.: O conto a que o autor se refere é “A estrutura da bolha de sabão”.