É compreensível que os brasileiros associem a arquitetura de Oscar Niemeyer essencialmente a Brasília. Entre as questões mais importantes de seus projetos está a do espaço, tema desta carta ao engenheiro calculista José Carlos Sussekind.
S.l., 13 de julho de 2001
Sussekind,
Há muitos anos, creio eu, não ficava cinco dias sem trabalhar. Desta vez resolvi atender meu médico e manter o braço na tipoia, como ele pediu.
Foi uma boa experiência. Continuei a frequentar o escritório das nove da manhã às nove da noite. Mas sem desenhar, sozinho, na sala dos fundos, que é meu canto preferido.
A solidão nunca me incomodou, e lá ficava a ler, a pensar na vida, o que me faz muito bem.
E me detive um pouco no livro que me ofereceu, surpreso quando Platão conta a morte de Sócrates com minúcia tal que não parecia coisa ocorrida há tanto tempo. Os amigos a rodeá-lo, e ele a defender tranquilo sua decisão, reclamando dos que choravam. “Parem com essa choradeira. Foi para evitar isso que impedi a presença das mulheres”. Depois, o homem com a cicuta a explicar a Sócrates como ocorreria a sua morte, os sintomas, enfim, um relato tão perfeito que da sua veracidade começo a duvidar.
E, não sei por quê, lembrava Getúlio Vargas, a carta tão importante que nos deixou e de que nos orgulhamos como brasileiros, amantes – como ele – deste país. Ou os camaradas assassinados na Guerrilha do Araguaia, os velhos companheiros que conheci nos tempos áureos do PCB, contentes com a vida, e a ideia de que, juntos, mudariam este mundo perverso, pelo qual corajosamente se sacrificaram.
Li nos jornais o artigo de [Mário] Gibson Barbosa, tão atual, e os que discutem a crise energética, esta escuridão que ameaça nosso país, decorrente deste clima de incompetência e degradação moral em que vivemos.
Satisfatório foi, como você sabe, o nosso encontro em Niterói, com o prefeito Jorge Roberto e o empresário Selmo Treiger, que assumiu a direção das obras do Caminho Niemeyer. E a esperança que nos ficou de ver aqueles projetos concluídos, e o sucesso que o Museu de Arte Contemporânea conquistou e vai se multiplicar por todo o conjunto, tão variado, tão diferente do que nesse gênero foi até hoje realizado.
Falei com Cecília pelo telefone, preocupada agora com a exposição em Paris. Dela recebi um CD com poemas dos grandes poetas portugueses como Fernando Pessoa, Miguel Torga, Manuel Alegre (entre outros), musicados em fado. E isso me lembrou quando, nos primeiros tempos de Brasília – a terra ainda deserta, e nós afundados na poeira do cerrado – JK, para surpresa minha, me enviou por um portador uma edição primorosa de Os Lusíadas, de Camões. Presente que, na primeira viagem que fiz ao Rio, ofereci ao meu querido amigo e grande poeta Ferreira Gullar. O que agora volto a fazer com os CDs da Cecília.
Na minha última carta, prometi que falaria um pouco do espaço na arquitetura. Mostrar como essa ligação é fundamental e está presente na elaboração de todos os nossos projetos. Até o espaço vazio entre dois prédios, cabe-nos a tarefa de proporcioná-lo. E isso se repete e se multiplica quando se trata de um conjunto como no caso do Caminho Niemeyer, onde vários edifícios estão previstos.
O princípio arquitetônico que recomenda uma boa proporção entre volumes e espaços livres tem sido tão esquecido que vale exemplificar. No projeto da sede do Partido Comunista Francês em Paris, o programa incluía um grande auditório. Pensei numa cúpula, mas, se ela fosse localizada no pavimento térreo, seu volume, grande demais, não atenderia aquele princípio tão importante, o que me levou a situá-la no subsolo e com isso só uma parte dela apareceria, satisfazendo assim essa relação indispensável que a boa arquitetura deve assegurar.
Na sede Mondadori, a minha preocupação com a invenção arquitetural explica ter evitado a repetição de um mesmo vão, como é comum em qualquer colunata, desenhando-os com espaçamentos diferentes, uma solução inteiramente nova na história da arquitetura. E o texto de Rilke que transcrevo evidencia como até na natureza o espaço é importante, quando a admiramos: “Como árvores são magníficas, porém o mais magnífico ainda é o espaço sublime e patético entre elas”.
No Congresso Nacional em Brasília, por exemplo, se o espaço entre as duas cúpulas fosse reduzido em cinco metros, a boa relação entre elas estaria prejudicada e com isso a própria arquitetura.
Projetei, meses atrás, um pequeno centro cultural na Estrada das Canoas. Duas cúpulas se entrelaçando, e o problema principal que encontrei foi determinar o espaço vazio entre elas; era dele que dependia a beleza da arquitetura.
A estrutura que você calculou para a Catedral de Niterói, com os três apoios sugeridos, criava entre eles e a cúpula um espaço que você deixou para eu definir a meu critério. Foi o que fiz, ampliando as seções do concreto na procura da forma desejada. É um exemplo da boa relação que deve existir entre o arquiteto e o engenheiro. Um, usando a sua técnica em toda plenitude; o outro, respeitando-a, mas livre para todas as suas fantasias.
É claro que vencer os espaços livres foi sempre um desafio para os arquitetos, e nisso, Sussekind, você tem me ajudado muito. Como eu gostei de ver concluído o grande auditório de Constantine,[1] e ouvir de você, que o calculou: “Este vão é um recorde mundial!”.
Até nos interiores dos nossos projetos deles nos ocupamos, usando certos truques. Para lhes dar uma impressão de maior amplitude, por exemplo, reduzimos o espaço que lhes serve de acesso, ou eliminamos apoios, ou criamos paredes revestidas de espelhos. Sussekind, é tal a minha preocupação com o problema do espaço na minha arquitetura que, ao desenhar uma planta baixa, nela desenho também uma figura humana na mesma escala. É uma forma prática de avaliar se o espaço previsto é suficiente.
Sabe, Sussekind, até ao desenhar as minhas esculturas preocupei-me com os espaços vazios que nelas existem.
Ninguém imagina como deles cuidei e como, para bem proporcioná-los, as modifiquei. Sempre as imaginei ao ar livre, nas praças, como que feitas para o povo.
Lembro-me até os almoços que tive em Nova York com o grande pintor Miró, e ele a reclamar dos espaços fechados em que suas obras eram apresentadas, sem saber que um dia, nos grandes espaços livres da Défense, uma escultura sua seria exibida.[2]
Apoiado pelo prefeito Luís Paulo Conde, localizei as minhas esculturas na areia da praia do Leme. O César Maia, sem consulta, as retirou de onde estavam tão bem. O que fazer?
Recordo André Malraux quando – inteligente como era – enriqueceu com esculturas femininas uma das praças de Paris. Era um homem fino, sensível, amigo das artes e dos artistas de seu país. É claro que não podemos esperar o mesmo de César Maia, que na sua mediocridade confundiu autoridade com grosseria.
Falta de respeito que desprezo e que só o compromete.
Um abraço,
Oscar
Conversa de amigos: correspondência entre Oscar Niemeyer e José Carlos Sussekind. Rio de Janeiro: Revan, 2002, pp. 154-159.
[1] N.S.: A Universidade de Constantine (UMC), na Argélia, foi projetada por Niemeyer em 1969.
[2] N.S.: A obra Dois personagens fantásticos, de Miró, está instalada em frente ao centro comercial Quatre Temps, no La Défense, centro financeiro de Paris.