Taubaté, 15 de julho de 1905

Rangel,

O bilhete postal — um beliscão — talvez me faça dar resposta à tua última e dizer o que penso do Diário e do autor — coisa que há 15 dias pretendo, mas não consigo fazer. Digo “talvez”, porque tal­vez esta carta fique a meio caminho. Conheces muito bem a doença periódica da grafobia, que nos torna a pena odiosa e repulsiva. E estou adivinhando que durante essa demora, todos os dias, lá numa covanca de Minas, uma Vaidade de pernas ia esperar o correio, ansiosa, e a todas as malas mordia os lábios com os dentes da decepção. “De­via ter vindo (raciocinaria a tua Vaidade). É fatal que venham os deliciosos bombons com licor dentro. Mas por que tardam tanto? O pagamento antecipado já lá foi, sob forma de outros bombons marca Elogio Mútuo — e o infame Lobato demora!”

Meu caro: a explicação é que Ragueneau[1] anda bilioso, cheio de pensamentos negroides, e não tem feito pastéis de medo de trocar os ingredientes, metendo pedregulhos em lugar de azeitonas, com possível dano de algum dente incauto. Veja você que sábio é Rangueneau em deixar o forno apagado enquanto a bílis lhe amarela as ideias e o riso. Ainda ontem enchi os ouvidos de uma das minhas namoradas com juras de arrebentar os miolos, e falei em revolver faca e outras ala­vancas da indiferença feminina. Mas hoje, Rangel, minha intenção é molhar a pena em tinta cor de rosa — mas antes disso quero prolongar esse ar de decepção que estou vendo em tua cara, e em vez dos espe­rados bombons terás de ouvir de pé firme uma história de dormir em pé. É inútil pular estas linhas e ir procurar algum bombom no fim, porque hoje não vai nenhum — estão a secar ao sol. Julgas por acaso que é coisa decente este torneio de elogio mútuo em que andamos? Pensas que já me esqueceu aquela tua carta que começa assim: “O teu estilo tem todos os fulgores…” Supões-me então ingênuo co­mo um tal Godofredo Rangel que ouvia impávido uma boutade dum tal Ricardo Gonçalves, e manteve-a na boca como bala puxa-puxa, e anotou-a carinhosamente no Diário com que pretende escalar o mor­ro da Glória: “O teu estilo é o mais perfeito que ainda apareceu no Brasil?” Rangel, Rangel! Seja um bocadinho mais hipócrita e raspe aquilo. Que não dirá a Posteridade?

Estilos, estilos… Eu só conheço uma centena na literatura uni­versal e entre nós só um, o do Machadão. E, ademais, estilo é a últi­ma coisa que nasce num literato — e o dente do siso. Quando já está quarentão e já cristalizou uma filosofia própria, quando possui uma luneta só dele e para ele fabricada sob medida, quando já não é suscetível da influenciação por mais ninguém, quando alcança a perfeita maturidade da inteligência, então, sim, aparece o estilo. Como a cor, o sabor e o perfume duma fruta só aparecem na plena maturação. Repare no Machadão. Quando lhe aparece a cor, o sabor, o perfume? No Brás Cubas, um livro quarentão. Que estilo tem ele em Helena ou Iaiá Garcia? Uma bostinha de estilo igual ao nosso. Ao Eça só o en­contramos já estilizado e inconfundível no Ramires. Antes de nos vir o estilo o que temos é temperamento. Há na arte do desenho um exemplo claro disso na “estilização”, duma flor, suponhamos, a flor natural é o nosso temperamento; a flor estilizada é o nosso es­tilo. Enquanto esse temperamento não alcança o apogeu da caracteri­zação, não pode haver estilo. O Eça nas Prosas bárbaras não tem es­tilo; usa e abusa barbaramente da “impropriedade” com o fim de irritar o Camilo Castelo Branco, o Bulhão Pato e os burgueses do Porto. Esse abuso da impropriedade, que à primeira vista parece ser a sua futura característica do estilo (tanto é alta a dose nas pri­meiras coisas), no Ramires aparece homeopático e felicíssimo, e da mesma sábia dosimetria de Machado de Assis.

Poderás, Rangel, com os elementos básicos que há em você, ter um estilo, e certo que o terás — mas ainda é cedo. Estás verdolengo. E o terás lindo, sobretudo se deres menos apreço às lisonjas fáceis dos amigos. Lembra-te que mutuamente já todos nos demos de gênio lá no Cenáculo e no entanto bem pequena é a dose de simples talento de todos nós, reunidos e multiplicados uns pelos outros.

Proponho-te escrevermos com mais assiduidade no Minarete.[2] Coisas leves, com diálogos — o diálogo areja. Coisas que interessam aos leitores, coitados, sempre tontos com isto de escrevermos só para nós mesmos, sem a mínima consideração para com eles, os sustentadores do jornal.

Os bombons ficam para outra.

Lobato

Monteiro Lobato. A barca de Gleyre. São Paulo: Brasiliense, 1972, pp. 60-61.

[1] N.S.: Confeiteiro, personagem da peça Cyrano de Bergerac (1897), de Edmond Rostand.
[2] N.S.: Periódico criado por Benjamin Pinheiro, amigo de Lobato, no qual este e outros escritores colaboravam. O nome é o mesmo com o qual batizaram o prédio onde residiam.