Paris, 23 de março de 1948

Querida minha, minha negra saudosa, meu amor mais lindo do mundo, novamente estou há uma semana sem cartas tuas, sem saber se estás no Rio ou em São Paulo, o correio de ontem trouxe carta da Argentina (de Rodolfo Ghioldi)[1] mas nada do Brasil. Não sei nem de ti, nem de João, nem dos meus velhos, nem dos meninos.

Aqui faz novamente frio, um tempo feio, escuro, sem sol. Isso após uns dias bonitos e alegres, de sol brando e doce. Creio, no entanto, que é o último frio e depois teremos o início da primave­ra (que pelo calendário já começou anteontem). Estou doido para ir para a Itália, mas, infelizmente, ainda não posso sequer marcar data certa de viagem pois os assuntos que me prendem aqui ainda não estão resolvidos. Já estou com quatro vistos: para Polônia, Iugoslá­via, Hungria e Tchecoslováquia. Faltam-me quatro: Albânia, Bulgária e Romênia e estou à espera da reposta desses países sobre minha ida, o convite e o visto. E principalmente do quarto, para mim o mais importante.[2]

Grandes promessas, dizem que é certo, já enviaram tudo para lá mas ainda não chegou, e eu quero sair daqui com esses assuntos resolvidos, inclusive porque como não sei a maneira como evoluirão os acontecimentos tampouco tenho ideia de como será nossa vida dentro de três ou quatro meses. Parece-me que muita coisa aqui está na dependência das eleições italianas que serão a 18 de abril. Tudo pode suceder após. Mas isso é assunto que só pessoalmente para conversarmos. Ou então eu teria que te escrever uma imen­sa carta explicando, mas isso vais ler nas reportagens que mando por este correio pros nossos jornais. Três reportagens sobre situação da Europa. Manda-me recortes quando saírem. Mas falo nisso por causa de tua viagem. Creio que o mais certo é embarcares para a Itália. Caso seja de avião (no aeroplano do Fernando) então deves permanecer uns dias em Portugal, caso embarques antes do dia 25 de abril, porque já então imagino ter uma perspectiva do que fazer e onde ficar. Caso venhas de navio podes embarcar aí em qualquer navio entre 10 e 15 porque assim vais chegar na Itália no fim do mês, quando já as primeiras repercussões das eleições estarão passa­das. Mesmo que, se vieres de navio, eu tenha tido que sair da Itália (e espero que não, só no caso de acontecimentos brutais), o Carlitos te esperará lá e eu estarei certamente na Iugoslávia, onde irias me encontrar. Mas com certeza estarei te esperando no cais de Gêno­va ou de Nápoles. Assim sendo acertemos o seguinte: se vieres de avião antes do fim do mês, paras em Portugal onde esperas carta minha dizendo para onde deves vir. Caso venhas de navio embarca aí na altura do dia 15 ou pouco mais para a Itália. Certo?

Uma coisa, negrinha, desejo que penses sobre ela: o ambiente aqui é de que tudo pode suceder nos próximos meses, a guerra in­clusive. Não é apenas chantagem, é a preparação guerreira. Bem, eu te pergunto e tu é que decides: nesse caso, com esse ambiente (não podes sequer imaginar o que é de tão tenso), vale a pena trazer João? Para mim é terrível não tê-lo aqui, mas não sei o que seria melhor para ele. Eu e tu, os dois sós, nos arranjamos em qualquer parte e em qualquer tipo de vida. E ele? Eu mesmo não me animo a te dizer “façamos isso ou aquilo, traz ou não traz João”. Mas eu estou cheio de saudades e toda a gente sensata daqui diz que não devia trazê-lo pelo menos imediatamente. Mas eu penso que sofre­rias muito longe de teus dois filhos, e que, por mais limitador que ele seja para teus movimentos e por mais sacrifício que seja tê-lo, vale a pena. Porém penso nele e não sei. Pensa nisso e o que resol­veres está bem resolvido.

Bem, aí está a tua carta de chamada. Nos fins de abril estaremos juntos e isso para mim é a vida. Já não posso mais de saudades.

Não sei ainda o dia de minha viagem para a Itália. Logo que te­nha solucionado todos os meus assuntos aqui, mas temo que ainda demore mais do que esperava. As coisas nem sempre marcham com a rapidez com que desejaríamos.

E Joelson e Fanny?[3] Casaram-se? Onde? E os velhos? Tomaram apartamento? E James?[4] Ainda está por aí ou já voltou para a Bahia? Manda-me notícias de todos. Viste a Lila[5] por acaso? Vou mandar um cartão a ela. Recebeste o dinheiro do Campiglia? Como estás de di­nheiro? Estou um pouco preocupado com isso. Trato de fechar uma série de contratos aqui na Europa para garantir nossa vida por mais uns meses sem problema financeiro. E outra coisa que ainda me pren­de aqui, os contratos de edição. Já assinei dois: um com Gallimard (NRF) para a tradução do Capitães da areia e a reedição do Jubiabá. Outros com as Éditions Sociales para a tradução do Seara,[6] que sairá primeiro como folhetim no Lettres Françaises e depois em volume. E estou tratando do São Jorge,[7] da Vida de Luís.[8] Mar morto sai em outubro.

Assinei contrato para o Terras[9] com a Polônia (250 dólares do adiantamento), Holanda e Eslováquia (língua eslovaca) e estou es­perando o contrato da Finlândia. O representante é muito bom.

Bem, amor, vou terminar, pois tenho um almoço na Embaixa­da da Tchecoslováquia e está na hora de ir (aqui passa-se metade do dia viajando do “metrô” pois a cidade é enorme e as distâncias horríveis). Escreve-me. Caso eu siga para a Itália no dia 30 te es­creverei dando um endereço em Roma para onde me escreveres. De qualquer maneira só ficarei aqui até o dia 8 de abril, meu prazo máximo para resolver todos os assuntos. Caso até 8 de abril não tenha resolvido tudo irei assim mesmo pois quero pegar pelo menos os dez últimos dias da campanha eleitoral. Mas tenho esperanças de ir antes, de pôr tudo em ordem até 30.

Uma coisa importante: visa aí teu passaporte, além da França e Itália, para Polônia (te é fácil), Tchecoslováquia (não é difícil) e Iu­goslávia (o Maurício pode te apresentar nesta embaixada). Inclusive podes dizer que eu já tenho visto e convite para esses países. Isso evitará uma enorme perda de tempo aqui. Trata imediatamente disso.

Amor, tenho um mundo de saudades e de ternura. Apenas creio que me encontrarás inteiramente brocha, pois já perdi o hábito. Abra­ça toda a gente, beija minha mãe e meu pai e João, abraça os meninos.

Um beijo, amor, com toda a saudade do teu filho,

Jorge

P.S.: Última hora: por mim traz João.

Toda a saudade do mundo: a correspondência de Jorge Amado e Zélia Gattai: do exílio europeu à construção da Casa do Rio Vermelho (1948-67). Organização e notas de João Jorge Amado. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, pp. 44-47.

[1] N.E.: Rodolfo Ghioldi (1897-1985), ativista político argentino, dirigente do Partido Comunista Argentino e representante do Secretariado Sul-Americano da Internacional Comunista (Comintern). Foi muito amigo de Jorge Amado.
[2] N.S.: Refere-se à União Soviética.
[3] N.S.: Joelson Amado (1920-), irmão de Jorge Amado, e Fanny Rechulski (1924-1999), mulher de Joelson.
[4] N.S.: James Amado (1922-2013), escritor e irmão caçula de Jorge Amado.
[5] N.S.: Eulália Dalila (1935-1950), filha mais velha de Jorge Amado com sua primeira mulher, Matilde Garcia Rosa.
[6] N.S.: Seara vermelha, romance de Jorge Amado publicado em 1946.
[7] N.S.: São Jorge dos Ilhéus, romance de Jorge Amado publicado em 1944.
[8] N.S.: O cavaleiro da esperança: a vida de Luís Carlos Prestes, biografia escrita por Jorge Amado e publicada em 1942.
[9] N.S.: Terras do sem-fim, romance de Jorge Amado publicado em 1943.