Corte [Rio de Janeiro], 8 de janeiro de 1889
Adorado Virgílio,
Estou em maré de enjoo físico e mentalmente fatigado. Fatigado de tudo: de ver e ouvir tanto burro, de escutar tanta sandice e bestialidade e de esperar sem fim por acessos na vida, que nunca chegam. Estou fatalmente condenado à vida de miséria e sordidez, passando-a numa indolência persa, bastante prejudicial à atividade do meu espírito e ao próprio organismo, que fica depois amarrado para o trabalho.
Não sei onde vai parar esta coisa. Estou profundamente mal, e só tenho a minha família, só te tenho a ti, a tua belíssima família, o Horácio[1] e todos os outros nobres e bons amigos, que poucos são. Só dessa linda falange de afeições me aflige estar longe, e morro, sim, de saudades. Não imaginas o que se tem passado por meu ser, vendo a dificuldade tremendíssima, formidável em que está a vida no Rio de Janeiro. Perde-se em vão tempo, e nada se consegue. Tudo está furado, de um furo monstro. Não há por onde seguir. Todas as portas e atalhos fechados ao caminho da vida, e, para mim, pobre artista ariano, ariano, sim, porque adquiri, por adoção sistemática, as qualidades altas dessa grande raça, para mim que sonho com a torre de luar da graça e da ilusão, tudo vi escarnecedoramente, diabolicamente, num tom grotesco de ópera bufa.
Quem me mandou vir cá abaixo à terra arrastar a calceta da vida! Procurar ser elemento entre o espírito humano?! Para quê? Um triste negro, odiado pelas castas cultas, batido das sociedades, mas sempre batido, escorraçado de todo o leito, cuspido de todo o lar como um leproso sinistro! Pois como! Ser artista com esta cor! Vir pela hierarquia de Eça, ou de Zola, generalizar Spencer ou Gama Rosa, ter estesia artística e verve, com esta cor? Horrível!
És um coração partido, acabo de saber pela tua chorosa carta.
Broken heart! Broken heart!
A tua Lilly[2] emigrou, doce pássaro d’amor, para esta tumultuosa cidade. Hoje vou vê-la e à mãe, e as flores que elas espalharam pela tua lembrança e pelo teu coração eu farei com que cheguem ainda vivas e cheirosas junto de ti. Quero ver como essa avezinha escocesa de amor e saudade…
Adeus! Saudades infinitas à tua encantadora família, e que eu lhe desejo bons anos de ouro e de festas alegríssimas no meio da mais soberana das satisfações.
[…][3]
Veste o croisé[4] e vai, por minha parte, apresentar pêsames sinceros e honestos às tuas excelentíssimas primas, pela morte do palheiro, do limpo homem de distinção José Feliciano Alves de Brito.[5] Não te esqueças. Honra-me por esse modo delicado e gentil.
Abraça-te terrivelmente saudoso
Cruz e Sousa
A República das Letras: de Gonçalves Dias a Ana Cristina Cesar: cartas de escritores brasileiros: 1865 – 1995. Seleção, prefácio e notas de Silviano Santiago. Rio de Janeiro: Sinel, 2003, pp. 60-61.
[1] N.E.: Horácio de Carvalho, escritor, deixou obra dispersa.
[2] N.E.: A carta de Cruz e Sousa é resposta a uma outra, escrita por Virgílio, em que este fala da sua tristeza e ciúmes em relação a uma jovem inglesa de nome Lilly. Diz que está melancólico e de “broken heart”.
[3] N.S.: Trecho suprimido na edição-base.
[4] N.S.: Sobrecasaca.
[5] N.E.: Amigo da família de Virgílio, industrial e político.