Petrópolis, 25 de março de 2001

Oscar,

Estava eu relembrando um almoço agradável desta semana com Brizola e outros amigos e eis que, pouco depois, entra no meu fax sua nova carta, a ele se referindo como exemplo de coragem e reserva de resistência nacional.

Parece que foi ontem – e, na verdade, quase vinte anos já se passaram – quando, por sua mão e, através dela, também pela do Darcy [Ribeiro], fui levado ao então governador Brizola para conversar sobre a ideia do Sambódromo. Nesta reunião, a quatro, você levava o esboço daquilo que, menos de cinco meses depois, estaria pronto; lembro-me da pergunta, central e direta, do governador: “Dá para ficar pronto até o Carnaval?”. E de minha resposta, sincera, dizendo que coisa igual, em tal prazo, nunca se fizera, mas que, em minha opinião, daria para ser feito.

Ainda me recordo, quando nós dois, juntos, saímos deste encontro – eu nem suspeitando de como ele tinha sido importante para a minha vida futura – e de nossa dúvida acerca de qual decisão seria tomada por Brizola.

Tendo o agravante da hostilidade da mídia, que a ele se opunha, estaria – certamente – assumindo grande risco político com uma eventual decisão de tocar adiante tão ousado projeto, em termos de prazo.

Quinze dias depois, uma Comissão Especial estava constituída sob a presidência de Darcy e, realmente surpreso, me vi nela figurar, não na condição (que seria natural) de responsável pelo cálculo estrutural, mas, como também, responsável técnico pelos projetos de engenharia e pela execução do empreendimento como um todo. Começava uma intensa e, até hoje, inesquecível aventura; 110 dias depois, a obra estava pronta, uma semana antes do prazo. Nesses poucos dias, fizemos licitações, contratamos construtores e fornecedores, desenvolvemos os projetos (que saíam direto das pranchetas para a execução) e, em paralelo, boa parte da imprensa a dizer que “não ia ficar pronto”, depois que “ia cair”, em seguida que “a acústica seria péssima” etc.

Mais de uma vez, você precisou se pronunciar e escrever artigos defendendo o projeto e, até mesmo, o cálculo estrutural. Era tal a histeria contrária, que fui obrigado a mandar fazer uma prova de carga antecipada, carregando as arquibancadas com barris cheios d’água, para atestar sua segurança e resistência aos olhos da opinião pública. Você deve se lembrar, Oscar, que no dia da inauguração, já com as escolas desfilando, o que era uma junta prevista em projeto e, portanto, existente na construção, chegou a ser interpretada pelos bombeiros como uma perigosíssima rachadura nas colunas, a traduzir risco imediato de ruína das arquibancadas. Recordo-me da figura – elegante, suave, gentil – de dona Neusa Brizola, com olhar assustado, avisando que “Leonel” me procurava com urgência, já que a ele estavam propondo evacuar as arquibancadas da Apoteose (apenas nelas havia vinte mil pessoas!); a dúvida dos evacuadores potenciais era se tal seria imediato ou se poderiam, para diminuir o pânico, esperar a escola (apenas aquela) acabar seu desfile. Com que alegria e alívio sorrimos e comemoramos a inexistência do problema e a consagração final de seu projeto, tão logo lhes assegurei que nada havia com que nos preocuparmos. Hoje, não há mais críticos da ideia, que em dois anos se pagou diante da economia propiciada pela supressão das construções provisórias que eram, anualmente, feitas para o Carnaval.

Apesar do meu contato, àquela época, ser muito mais intenso com Darcy – era quase que diário, ao longo daqueles quatro meses –, algumas vezes estive com o então governador. Afinal, tratava-se, debaixo de todos os refletores, da principal obra de seu governo, sob o mais intenso dos escrutínios.

Pareceu-me, assim, uma consequência natural que, com a mesma equipe e o mesmo sistema de gestão, menos de um ano depois tenhamos sido incumbidos do programa dos CIEPs, as escolas de tempo e atendimento integral às crianças, o projeto mais vezes multiplicado em nossa história da construção, creio eu. Ao longo dos dois anos seguintes, implantamos cerca de cem unidades; depois tudo parou e andou para trás durante quatro anos, já que Darcy não se elegeu sucessor de Brizola, mas a retomada veio, plena e prioritária, com a reconquista do governo por nosso amigo, em [19]91. Hoje são mais de quinhentos, mais de 2,5 milhões de metros quadrados construídos.

Agrada-me, arquitetonicamente, a dignidade que você lhes deu, mesmo precisando respeitar (e portanto se autolimitar) a necessidade imperiosa de custo final 30% inferior ao de uma construção convencional de mesma área. O projeto, por lógica evidente, foi concebido para ser inteiramente pré-fabricado, sem necessidade de formas e escoramentos no local da obra; não requereu arrojo do engenheiro estrutural – o importante foi a concepção utilizando apenas sete tipos de pré-fabricados, o que, até hoje, me traz satisfação profissional.

O que mais me atrai no entanto, nos CIEPs, é sua gênese quase psicológica – de certo modo indireto me faz associar a metáfora do brinquedo do Cidadão Kane – na mente de Brizola. Uma única vez, ele me contou que, quando pequeno e muito pobre, se encantava olhando, de fora das grades, para o colégio inglês (creio eu) de Passo Fundo, com suas três “imponentes” construções: o prédio das salas de aula, a biblioteca e o ginásio coberto. Ele deu, décadas depois, às crianças pobres como ele, o colégio que sonhou frequentar, mas cujas grades sequer podia pensar transpor. Isso é de uma beleza incomum, jogando sobre Brizola um grau de humanidade e emoção que poucos foram, até aqui, capazes de detectar e compartilhar.

Voltando ao trabalho, você se lembra de que fui encarregado, também, do projeto e construção da Linha Vermelha (da qual sou hoje assíduo usuário em minhas vindas para os fins de semana em Petrópolis). Esta me fez, aprofundando a relação direta, poder testemunhar o caráter e a rígida honorabilidade do homem Leonel Brizola. Incluindo a dignidade com que geria sua vida pessoal e familiar e a coerência de seu posicionamento político.

Brizola é, assim como você, um homem cuja alma nunca esteve à venda: preferiu perder as eleições presidenciais que coroariam sua carreira única a ter que, camaleonicamente, cuspir na própria história e convicções para dizer o que, no instante imediato, era mais agradável aos ouvidos da maioria, convenientemente pré-preparados pelo marketing macdonaldizado.

Estou certo de que, um dia, Brizola concluirá de modo similar ao nosso Darcy – que, em seu livro Confissões, nos deixa uma espécie de parágrafo-síntese: “Fracassei na maioria das propostas que defendi. Mas os fracassos são minhas vitórias. Eu detestaria estar no lugar de quem me venceu”.

Acabo de ler, Oscar, a Folha de S. Paulo: 85% dos brasileiros querem que o Congresso instaure uma Comissão Parlamentar de Inquérito para apurar acusações de corrupção contra o governo federal. E este a mover céus e terras e a explicitar ameaças claras de perseguição política aos parlamentares que venham a dar quorum para a criação desta Comissão. É tudo bem curioso: se um de nós fosse, torpemente, acusado de algo injusto, nosso maior desejo não seria aquele de querer a mais detalhada investigação que, no final, somente viria a consagrar o honesto e fulminar o caluniador?

Enfim, de um modo ou de outro, é a quadra final do atual governo. Que o sucessor seja, antes de tudo, antes de qualquer ideologia ou partido, um nacionalista e possa, ainda, fazer com que um dia, próximo de preferência, tenhamos agregados a volta de alguém com a envergadura de um Capanema, um time o mais próximo possível daquele que – animado e inspirado por seu inesquecível Rodrigo M. Franco – pensava as coisas não somente do patrimônio mas, principalmente, da cultura e identidade deste país.

Abraço afetuoso,

Sussekind

Conversa de amigos: correspondência entre Oscar Niemeyer e José Carlos Sussekind. Rio de Janeiro: Revan, 2002, pp. 41-45.