Salvador, Itapuã, 24 de janeiro de 1973

Otto, meu santinho,

Entreguei à menina o máximo de material que pude. Acho que para uma página dá e sobra, e haverá mesmo embarras de choix.[1] Controle a revisão, por favor, que é para não sair alguma cagada, embora eu saiba que a de vocês é ótima.

Estive no Rio por um dia, para o programa do Flávio Cavalcanti, e voltei correndo. Achei o ambiente ouriçadíssimo, e amarrei um porrão por causa disso. No final do programa até saí correndo e esqueci de pegar a merdalha de ouro que havia ganho.

Existe assinatura do Jornal do Brasil aqui na Bahia, e distribuição até Itapuã? Se houver, você bem podia me arrumar uma de três meses, como uma espécie de retribuição por essa entrevista, que me tomou dois dias de seleção do material e bater à máquina. Se for possí­vel, é claro: porque não se encontra o jornal aqui na banca de Itapuã, e me faz falta. Pelo menos o número em que sair a entrevista eu gosta­ria que você pedisse à sucursal aqui que me mandasse entregar.

Quanto ao mais, aqui está lindo, e minha paz só hoje foi perturbada com a sobrevinda de Luciana e Georgiana.[2] Comecei a pegar firme os dois livros de poemas, O deve e o haver e o Roteiro [lírico e sentimental da cidade do Rio de Janeiro], e é bem capaz de tê-los prontos até fim de março, quando pretendo me mandar daqui. Entrei, também, firme na dieta e creio que chegarei aí uma graça. Diga a Fernando [Sabino] que aquele projeto dele, de eu surgir um dia no Rio com cara de quarenta anos, para estupefação geral, é bem possível que se realize.

Acho que a falta de assunto deve ser muito grande, porque os jornalistas (daqui, do Rio e até de São Paulo) não me têm deixa­do em paz. Por falar em Fernando, como vai o novo cineasta? E Hélio [Pellegrino]? Grandes abraços para os dois.

Fiz, com o Jorge, uma entrevista a dois, responden­do as mesmas perguntas, que eu acho ficou bem boa. Esculhambamos o ato do ministro da Justiça de mandar recolher o álbum de gravuras eróticas de Picasso. E a censura. Deve sair na próxima Manchete. E conse­guimos que o Adolfo [Bloch] pagasse cinco milhões, que é para cortar um pouco (sem indireta, é claro, porque a você eu só não dou a bundinha porque não fica bem) essa onda de encher página de graça com o trabalho da gente.

Acho que estou pegando, devagarinho, minha mão para a poesia. Tenho me divertido em “lutar com as palavras”, o que, como diz o Drummond, não é “luta vã”. Outro dia foi o sessentenário do [Rubem] Braga, e fiz um sonetinho para ele, quase como um exercício. E só não o mostrei por­que o bicho se picou daqui, com o negócio da morte por acidente do marido da mulher dele, aquela mineira que você sabe. Não é nada demais, mas também não é de se jogar fora. Diz o seguinte:

Soneto no sessentenário de Rubem Braga

Sessenta anos não são sessenta dias
Nem sessenta minutos, nem segundos…
Não são frações de tempo, são fecundos
Zodíacos, em penas e alegrias.

São sessenta cometas oriundos
Da infinita galáxia, nas sombrias
Paragens onde Deus elege mundos
Desse caos sideral de estrelas-guias.

São sessenta caminhos resumidos
Num só; sessenta saltos que se tenta
Na direção de sóis desconhecidos

Em que a busca a si mesma se contenta
Sem saber que só encontra tempos idos…
Não são seis, nem seiscentos: são sessenta![3]

Itapuã, 12.1.73

Só não gosto do verbo “elege”. Gostaria de dar a impressão de pesca, ou de colheita. “…onde Deus arpoa mundos”. Mas é feio. “…onde Deus recolhe mundos”. Também é feio, pelo “imundos”, “…onde Deus escolhe mundos”. Mesma coisa. Veja se encontra um verbo justo, que dê ideia de “seleção”, e melhor. “…onde Deus colhe seus mundos”. Também não serve. Mostre ao Braga. Acho que ele não vai querer que se publique, por­que está puto com a idade. Diga com franqueza o que você acha.

Não achei o Braguinha muito feliz aqui, não. Acho que lhe faltava a patota do Antonio’s (Archers e Robertos etc.), que prometeu vir e não veio. Ele ia dar um jantar no restaurante mais em moda aqui, o Moenda, mas se mandou no dia.

Agora, de repente, me ocorreu o verbo “recriar”. “…onde Deus recria mundos”. Não me parece mau, que acha você? Mas deve haver outro mais to the point.[4] Nesse caso, a primeira palavra do verso seguinte deve ser “Nesse”, e não “Desse”.

É, Otto, poesia é dose para poeta-leão.

Abraços em Helena e nos meninos. Aqui, muito baianamente, o seu velho, e sempre

Vinicius

P.S.: Estou deliciado com o livro do [Pedro] Nava. Curtindo demais. Vou escrever sobre.

Otto:

acho que descobri o verbo do soneto. “…onde Deus resgata mundos”.

…onde Deus resgata mundos
Desse caos sideral de estrelas-guias.

Pode ser também:

…onde Deus engendra mundos
Desse caos sideral de estrelas-guias.

Eu acho que, talvez, resgata seja o melhor.

Beijos,

Vinicius

Arquivo Otto Lara Resende / Acervo IMS.

[1] N.S.: Dificuldade na escolha.
[2] N.S.: Georgiana e Luciana de Moraes, nascidas em 1953 e 1956, respectivamente, filhas de Vinicius com Lila Bôscoli, irmã do amigo Ronaldo Bôscoli.
[3] N.S.: O soneto foi publicado em Poemas esparsos (São Paulo: Companhia das Letras, 2008).
[4] N.S.: Conciso, objetivo.