Rio de Janeiro, 20 de fevereiro de 1954

Em primeiro lugar, venha de lá um abraço pelo súbito imprevisto e feliz resultado do affaire Lisboa, que assinala a primeira e modesta vitória de um mineiro sobre a grei nortista, nestes 450 anos de vida brasileira. Só não lhe telegrafei transmitindo a grata notícia porque soube que o Chermont[1] já o fizera. Segundo este contou ao nosso Rodrigo,[2] o caso passou-se assim. Na véspera do embarque do ministro Rao[3] para a Conferência de Caracas, o Chermont interpelou-o sobre o caso, ouvindo como resposta que já havia compromisso com o Aurélio[4] para a vaga do Álvaro. Chermont, entretanto, pediu licença para aduzir alguns argumentos em favor de outra solução, que lhe parecia mais conveniente, e que o anunciado afastamento de Sérgio B. de Holanda tornava possível. Esses argumentos foram de tal ordem que o ministro se deixou convencer e autorizou-o a propor o Aurélio, já dono de Lisboa, o périplo México-Roma. Chermont não perdeu tempo, e convocando o Aurélio apresentou-lhe de surpresa a proposta; este, justiça seja feita, topou-a com galanteria, ao que me dizem. De sorte que, de uma hora para outra, e quando não se tinha mais esperança, a sorte mudou para o lado de você. Parece (é suposição minha) que a qualidade do trabalho realizado aí por você terá sido a razão maior, pois nenhum outro enviado cultural apresentou ainda nada de parecido com os Cuadernos brasileños (e aproveito o ensejo para lhe agradecer a oferta do primeiro número, agora recebido).

Tenho andado numa roda viva de trabalho, e isso explica a relativa escassez de cartas. Além disso, na semana passada fui a Minas cumprir um desejo de minha mãe, que desejaria ter seus despojos reunidos aos de meu pai, no cemitério de Belo Horizonte. Assisti em Itabira à exumação dos ossos, e ajudei a levá-los até ao Bonfim, onde agora repousam junto aos do velho. Se lhe disser que não fiquei arrasado pela cerimônia, você talvez se surpreenda; mas é que, nas duas horas e tanto que durou aquela pesquisa e recolhimento de pobres ossos, me visitava o pensamento consolador de que nada mais, nem alma nem corpo, restava de minha mãe, e ela era pura saudade dentro de mim e de algumas pessoas. Talvez este pensamento não se concilie bem com o que me ocorreu depois, no Bonfim, ao encaixarmos a urna no jazigo: já então, parecia-me que se celebrava uma última boda, dos restos dos restos de um com os restos dos restos de outra, e essa aproximação final dos despojos excluía toda tristeza e constituía uma vitória sobre as limitações do tempo, da natureza e da morte. Tudo isso, é claro, sentido mais do que pensado, e isento de literatura. Não creio que me tivesse deixado penetrar por essas imaginações para não sofrer; o que suponho é que assimilei já de tal modo a morte de meus pais que é como se eles estivessem vivos a meu lado – e realmente estão, pela frequência e intensidade com que os sinto, como algo de incorporado a mim mesmo, ou melhor, a que eu próprio os haja incorporado.

Sua sugestão sobre a nota a ser incluída nas Poesias completas parece-me boa, e vou resolver o assunto ao receber as provas. Ando dando duro na crônica diária para o Correio e num projeto de programa radiofônico para o Ministério da Educação. Ó vida cara, a quanto nos obrigas! Na colaboração jornalística, estou verificando em mim, com estupor, a tendência para meter o pau no próximo, quando já a madureza me parecia me soprar auras mais benévolas. Manolo e Maria Julieta estão circulando em São Paulo, onde há Bienal e Festival de Cinema. Os meninos estão aqui; o menor ainda é uma doçura de bebê, mas o Cafioto exige um exército para vigiá-lo e contê-lo. Excelente retrato o do Francisco de Assis no seu velocípede. Obrigado. Lembre-nos a Lilita.

Para você o melhor abraço do

Carlos

Cyro & Drummond: correspondência de Cyro dos Anjos e Carlos Drummond de Andrade. Organização, prefácio e notas de Wander Melo Miranda e Roberto Said. São Paulo: Globo, 2012, pp. 196-199.

[1] N.S.: Jaime Sloan Chermont foi chefe da Divisão Cultural do Itamaraty na década de 1950.
[2] N.S.: Rodrigo Melo Franco de Andrade (1898-1969). Organizou e coordenou o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional/SPHAN, no qual Drummond atuaria como chefe da Seção de História, na Divisão de Estudos e Tombamentos, entre 1945 e 1962.
[3] N.S.: Vicente Rao (1892-1978). Simpatizante da UDN, ocupou entre 1953 e 1954 o Ministério das Relações Exteriores do governo Vargas.
[4] N.S.: Aurélio Buarque de Holanda Ferreira (1910-1989). Eerceu a cátedra de Estudos Brasileiros na Universidade Autônoma do México de junho de 1954 a dezembro de 1955.