Belgrado, 24 de março de 1961

Meu caro Lêdo Ivo,

Já não me lembrava daquela história do acento circunflexo no Lêdo. En­tretanto, eu teria feito hoje mesmo a mesma reflexão se você, me aparecen­do com 18 anos como então, tivesse o ar de quem aceita sugestões afetuosas de um camarada já vivido. Continuo achando inútil o circunflexo.[1]

Não vá cometer a indiscrição de botar no jornal o que lhe vou dizer. Entretanto, é pura verdade histórica e até hoje secreta. Como eu não tives­se dinheiro quando fui eleito em 1934 para a Academia, simples cônsul de terceira classe recentemente promovido depois de quatro anos de auxiliar de consulado, fiquei muito atrapalhado com o caso do fardão. Na minha terra não sou profeta e de lá, do cais de Santos, não veio iniciativa alguma para que o fardão me fosse oferecido pelos meus conterrâneos, como su­cede em geral com os novos acadêmicos, se nascidos no Norte, esse Norte do qual eu teria recebido o fardão, caso meu pai não houvesse emigrado para os litorais paulistas.

Como resolver o problema da sessão solene de recepção! Aconteceu que um dos acadêmicos me confiou ao pé do ouvido que não precisava mais daquele fardão, porque não gostava de envergá-lo, e o ofereceu à venda por um conto de réis. Era mais fácil conseguir o conto de réis para o fardão velho do que os 20 ou 30 para o Almeida Rabelo, que então os mandava executar por esse preço. Hoje parece que anda pelo preço de 80 ou 100 mil cruzeiros.

Meu caro Ledo Ivo sem circunflexo: o meu fardão já não me serve, porque estufei no peito e na barriga. Se você for eleito e não tiver do berço nordestino o presente clássico, é só guardar o segredo e aparecer na sessão solene com um fardão patinado em seus ouros, mas ainda capaz de arrostar as luzes da cena. Estou falando sério. Dói-me no coração não encontrar utilidade para este veterano que defendo das traças com muita naftalina e amor. Que fazer dele?

Se estivéssemos no tempo do Kubitschek, eu sugeriria a criação do “museu histórico de fardões de Acadêmicos falecidos”. Ele era muito camarada para assinar ordens perdulárias. Faria logo um decreto e até nomearia um amigo meu para diretor. Porém, no tempo do Jânio, a cana é dura, o Jânio seria capaz de mandar um bilhete ao ministro da Educação determinando a arrecadação de todos os fardões de Acadêmicos, como objetos de luxo, e o leilão público para acabar com os últimos vestígios de tal indumentária, adversa ao século da austeridade em que estamos entrando triunfalmente.

Guarde tudo isto em segredo, e responda: quer o fardão de presente? Seja ou não eleito agora, mas certamente eleito um dia, quer ficar armado deste fardão que o livrará das íntimas angústias do bem pobrezinho cônsul de terceira classe de 1934?

E afinal: já está marcada a sua eleição? Quando quer os votos?

Afetuoso abraço.

Ribeiro Couto

E agora adeus: correspondência para Lêdo Ivo. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2007, pp. 167-168.

[1] N.E.: Lêdo Ivo conta, em Confissões de um poeta, como conheceu pessoalmente Ribeiro Couto, algumas semanas após sua chegada ao Rio, em janeiro de 1943: “Jorge de Lima me levara a Múcio Leão que, no matutino A Manhã, dirigido por Cassiano Ricardo, editava o suplemento Autores & Livros, onde logrei estampar alguma prosa e alguma poesia. Lá encontrei Ribeiro Couto, diretor de um suplemento voltado para a cultura latino-americana. Ao lhe ser apresentado por Jorge de Lima, surpreendi-me: ‘Lêdo Ivo? Como não o conheço? Ele é do grupo de Willy Lewin e do Vicente do Rego Monteiro, do Recife’. Subitamente interessado em meu porvir literário, Ribeiro Couto intimou-me: ‘Você tem que mudar de nome. Com esse nome, você não vai fazer carreira’. Não era a primeira pessoa que, no meio literário e jornalístico, se insurgia contra a minha certidão de nascimento. No Recife, Gilberto Freyre julgara tratar-se de um pseudônimo mal escolhido. Em algumas redações de jornais, aonde eu ia em busca de um emprego, meu nome causava estranheza. ‘Lêdo Ivo de quê?’ Explicava que o Ivo era o sobrenome paterno, e meu nome inteiro se resumia a sete letras. Houve mesmo um jornalista que teceu, para gáudio de toda uma redação tresnoitada, comentários sobre aquele desapontado postulante a um emprego cujo nome curtíssimo equivalia, em juízo, a um não-nome. E exclamava, deslumbrado com a sua própria inteligência: ‘Lêdo Ivo! O nome acaba quando começa’. Por mais judiciosas que fossem as ponderações de Ribeiro Couto, não aceitei a sua sugestão de mudar de nome, ou encompridá-lo com a adoção dos sobrenomes maternos. A saída, ele me fez uma súplica, aludindo ao meu acento circunflexo, que contraria as ortografias mais preclaras: ‘Mas pelo menos tire o chapeuzinho!’ Não tirei, considerando que é tarefa do revisor. E o singular é que também Manuel Bandeira era da teoria de que meu nome não haveria de pegar. Num cartão que me mandara quando eu, ainda em Maceió, ousara remeter-lhe alguns poemas, ele me perguntava, curioso: ‘Lêdo Ivo de quê?’. E, em nossos primeiros encontros no Rio, a interrogação voltou e chegou mesmo a escolher, para mim, e com base num dos sobrenomes maternos, um nome que, a seu ver, tinha todas as condições de abrir-me as portas da literatura brasileira. Eu deveria passar a chamar-me Lêdo Ivo de Araújo. Mas houve os que me aceitaram ou acolheram sem perquirir do nome, e mesmo achando que era um autêntico nome de poeta, condensado e misterioso.