Paris, 6.11.1974

Meu querido – Seu telefonema do dia 23 de outubro foi o maior presente que poderia imaginar. Só que, imagine, estava dopada com dois Mogadons e ainda um Fenergan por causa da insônia, e tinha ainda análise de manhã cedo. Nem pude comentar a sua maravilhosa carta que é na realidade um documento; e que documento! Tenho tanta coisa para te contar que fico até bloqueada: análise, além do trabalho, vivências alucinatórias de um mundo superarcaico – isso desde o começo da mesma – e mil e um projetos que devo realizar e ainda histórias, fábulas incríveis que criei na análise. Recriando a linguagem me vi explorando o fundo do oceano, descobrindo todos os bichos que o habitam e, ao ver um cardume de peixinhos, vivi-os como palavras. A grande baleia apareceu em seguida, engolindo-os, tendo eu em seguida escutado o barulho do jato expelido por ela, que era a linguagem formulada, tendo incorporado o cardume de peixes-palavras. Vivi também uma linda história na fase da descoberta dos dois sexos, polaridades que todos nós temos. Vivi essa fantasia deitada no divã. Vendo os dois pés comecei a fabular: numa colina à direita viviam cinco meninos e, separadas por um grande abismo, viviam cinco meninas na colina à esquerda. Eram crianças muito tristes por não poderem brincar juntas devido ao abismo que as separava. Um dia o Grande Corpo se pôs de pé e as crianças assim puderam se tocar e se acariciar, brincando juntas, e deliciadas descobriram que podiam andar juntas, embora com passos alternados, quando o Grande Corpo se punha em movimento. Antes, muito no início da análise, me desapropriei de todos os bichos que havia incorporado em criança, desde a serpente à águia e ainda o polvo. Criei também culhões, e os senti quentes entre as minhas pernas. Uma manhã, muito regredida, senti o colchão como um grande corpo; o meu era o de uma criança sem formas, o colchão absorveu os culhões, o corpo arcaico onde vivi incorporando quando criança todas as formas de corpos adultos. Vivi também mais tarde “a separação” em relação ao corpo da mãe. Descobri que este espaço fora por mim engolido por não poder suportar a separação, espaço esse fundamental, pois é através dele que formulamos a criação, tecendo-o como ponte com o mundo, e daí o porquê da sensação de vazio e morte quando, a obra acabada, caímos nesse espaço abismal, e também o orgasmo com gosto de morte é também o tecer esse vazio construindo assim a jouissance[1] para depois cairmos dentro do mesmo. Não é infernal? E o movimento do pênis, que entra e sai, confirmando assim a separação na ligação possível entre dois seres até a jouissance total… Tantas descobertas que nem é possível tentar dar a medida de tudo. Um dia terei que escrever um livro onde essa análise unifique arte, criação e vida numa só experiência.

Na fase da androginia gritava, chorava que queria ter seios do tamanho do Pão de Açúcar… E agora estou começando e aceitando a minha chamada homossexualidade; assumir o homem que vem desta aceitação. O branco, que é a primeira vivência do corpo da criança, me deu alucinações tais que até o meu sistema solar foi recriado dentro da minha própria fantasmática. Queria até arrancar os olhos de tanta dor depois de ter tido sonhos um atrás dos outros com o branco. Até chegar o branco da neve que cega… A grande vagina era a abóbada do céu. O mundo estava parado, metade na luz e metade na sombra. O sol e a lua parados também, até que a grande vagina começou a ter grandes orgasmos, e aí a chuva que caiu sobre a Terra a pôs em movimento, o Sol e a Lua começaram a se movimentar e os vulcões começaram a se abrir e rasgar o ventre do medo (que no fundo era eu mesma); do fogo nasceram os homens e do mar enormes pedaços de corpos de mulher apareceram, cobertos de gelatina, se fazendo, se compondo: foi de amargar. Até perdi o sentido do equilíbrio e nada podia ver; tudo era movimento e eu tive medo de cair para trás como o mundo…

Na fase da serpente, criei uma fábula: Um passarinho fez um ninho num galho de uma árvore sem saber que a serpente tinha a toca do lado e foi passear. A serpente sai do seu ninho e apanha os dois ovos, entrando na minha vagina, que chamei de toca, e faz os dois ovários. O passarinho fez outro ninho e botou mais dois ovos. A serpente sai da minha vagina e vai apanhá-los. O passarinho, que tinha dois bolsos, os colocou dentro (culhões), e começou a briga das duas serpentes, luta de vida ou morte; repare que o passarinho era já o pênis com os dois culhões. Aí vi que estava de cabeça para baixo e que as pernas estavam para cima. Dei um salto e caí sentada. As pernas eram raízes da árvore da vida, os braços, galhos que a sustentavam; o buraco-vagina estava no chão e a cabeça era uma gigantesca copa de árvore cheia de abelhas. Nesta quase fui embora do real, o que não aconteceu devido ao grande suporte que é o meu analista, que se chama Fédida…[2] Quando formulei o abismo da separação reelaborei o conceito do dentro é o fora, passando a ser o fora é o dentro…

Em todos os pontos da minha análise meu trabalho se encaixa de uma maneira tonal, isto é que me impressiona muito. Na minha fase de autossatisfação tirei do meu prazer da vagina um mundo. Saíram seios, pênis, todas as histórias infantis entraram pela grande porta me dando gozos incríveis até o real como um écran. Sou ou fui uma obsedée[3] sexual. Mas o meu processo, que é todo erótico, é uma passagem para o meu interrelacionamento com o real e, além disto, para a cosmogonia. Processo mais tântrico que ocidental. Meu corpo se abriu em todos os seus lados, saíram cachoeiras da minha barriga, me virei pelo avesso, meu derrière[4] ficou em carne viva, vi e senti que a criança é erótica em todo o seu corpo. Tudo é libido, tudo é sensação. Vivi a palavra até a sua última regressão e aí a tête d’abeille.[5] Era bater com a cabeça na parede, como disse ao Fédida. Ele acha que o mais incrível é que eu conservei a infância no corpo intacta. Acho que todos nós que criamos somos isso e a diferença entre nós e os psicóticos é que nós somos capazes de estendermos a ponte para o mundo comunicando, senão… ai de nós! Por aí você vê que o meu trabalho é a minha própria fantasmática que dou ao outro, propondo que eles a limpem e a enriqueçam com as suas próprias fantasmáticas: então é uma baba antropofágica que vomito, que é engolida por eles e somada às fantasmáticas deles vomitadas outra vez, somadas até as últimas consequências. Eis aí o que chamo de cultura viva e não cultura morta, que é a expressão no antigo suporte. E a sociedade, que tem medo do que é vivo pois é necrofílica, engole tudo hoje porque tudo expresso no antigo suporte está irremediavelmente morto. Aliás, escrevemos, eu e o Beto, um artigo sobre meu trabalho e quando sair e me mandarem a revista te mandarei uma fotocópia. Começo a me sentir dona de um saber; isso depois de ter elaborado minha toda poderosa vitalidade que, no fundo, era a afirmação da minha impotência ao extremo. Estou procurando descobrir o segredo da mulher e depois virá o homem. Estou lendo um livro maravilhoso, A fortaleza vazia,[6] e me convidaram para trabalhar com crianças autistas, o que farei, embora com muito medo. Veremos o que poderei fazer lá com o meu material. A Cabeça coletiva será tão grande que cobrirá a cabeça do homem desde os ombros. Será feita de plástico, mas as partes que se abrirão serão de um material que se rasga e cola em seguida, o que dará uma boa vivência para quem a traz na cabeça. Depois de esvaziada, abre-se como um fruto e aí nesse espaço é que sairão as palavras-frases sobre o corpo. E a verdadeira cabeça do homem ressurge do saber. A geografia do corpo serão macacões de várias cores, costurados em vários sentidos, e todos se vestirão interligados; acho que nesse trabalho a cor toma corpo, o que é importante para mim. No jardim coletivo, toca cheia de flores, os braços das pessoas emergem entre as mesmas, tocando-as, e se se encontrarem podem se dar um bom-dia, o que será uma boa gag. Agora estou com vontade de fazer outra coisa, voltando ao suporte. Passo pra trás, não sei, mas é importante neste momento. Um quadrado de papelão trazendo os lábios sexuais da mulher recortados. Descobre-se o mesmo e aparece uma vagina fechada. Abre-se com os dedos, aparecendo a vagina na camada de baixo, mais aberta, e continua-se abrindo a mesma até o fim para ver o que está por baixo de tudo; viola-se a mulher com os dedos na medida em que se quer ler (não tem palavras) ou melhor, descobrir o mistério da mulher. Gostaria de fazer isso com outras partes do corpo e depois com o homem também.

Veremos no que vai dar. Quanto às suas Proposições[7] ainda não as li inteiras, pois até a sua carta é tão densa que levei dias para conseguir lê-la. Vi na revista Pólen uma belíssima carta sua para o Waly [Salomão] e vi também o retrato do Romero, que é belo como um romano. A capa que ele veste tem outro espírito que o Parangolé. A meu ver é a nudez vestida; o problema me atrai, mas as outras tinham a meu ver uma força de uma cabeça de Boccioni ou de um rinoceronte. É natural que tenha essa preferência pela organicidade, que sempre me pareceu muito importante. A revista me pareceu muito bonita demais, me lembrando o século passado, paginada com um grande esteticismo… Quanto à música popular, ainda gosto muito do Macalé, do Milton Nascimento e do Naná. Caetano está muito decadente. Vi o seu show e não gostei nada. Ele não dá para palco; é intimista, mas mesmo as suas músicas estão muito sem vitalidade. O resto é para se comentar devagar. Suely ficou encantada com você. Você está com um fã-clube que não é brincadeira: Regina Cris, que não conheço, Flammarion, se lembra dele? Aqui está e ficou encantado com sua carta para mim. Não mostrei para ninguém o documento seu, aliás nem para o Mário, e nem sei se posso; diga-me na próxima carta se o posso fazer. Como sempre, Pedrosa está muito interessado em você.

Acho excelente a sua proposição:

Lygia Clark:

É a fantasmática do corpo, aliás, o que me interessa, e não o corpo em si.

Fiquei muito comovida quanto à outra parte em que você me cita no seu xerox. Acho que a nossa “separação” foi importantíssima para ambos. Depois do começo do seu Parangolé e do meu sobre o corpo, pela primeira vez acho que você me dá uma autonomia que no fundo é a sua própria. Encontrarmo-nos agora seria algo de muito rico, mas não sei quando aí poderei ir. Quanto à Bolsa Guggenheim, acho que não terei chance alguma. Já me disseram não, há anos, e agora que estou com uma história maior ainda seria um milagre. Terei que terminar essa minha análise, que é profunda demais para ser abandonada, e quando isso acontecerá, não sei, talvez até o fim do ano. Aí poderia me engajar numa outra aventura em outro país… Quanto ao papel do crítico, estou com você: ou a criatividade tem pensamento e diz tudo ou nada é, por isso que o crítico só pode se expressar ainda através da cultura morta, onde há o objeto-arte, mas agora é impossível. No meu trabalho existem duas coisas importantes. Meu depoimento e, talvez mais ainda, o depoimento das pessoas que vivem a experiência e a suíte de toda uma maturação ou desbloqueio que às vezes consigo lhes dar. Ah!… houve um enorme mal-entendido no telefone. Não tenho dois toca-discos; o que te ofereci foi o disco do Macalé, que tenho em double… Ando sem dinheiro algum. O inventário do meu pai não sai; é a merda total. Mas se tivesse dois, um seria seu, isto posso te assegurar!

Tenho na Sorbonne uma outra experiência que gostaria de te comunicar. Deita-se uma pessoa do grupo no chão e a embrulhamos num jornal da cabeça aos pés. Depois a colocamos de pé e a balançamos de um lado para o outro, bem devagar e depois a rodamos até que ela perca virtualmente todo o sentido do espaço. Em seguida a colocamos nos ombros (ombro tem h?), e saímos com ela cantando improvisado. Depois a colocamos em pé e começa-se o dévoilement.[8] Tiramos um pequeno pedaço do jornal que tampa-lhe os olhos e o primeiro, em geral, está fechado. Depois de tirar o segundo a despimos do papel e pedimos o vécu.[9] Um africano que era feio e se sentia rejeitado ficou doente da vesícula para escapar de ser rejeitado outra vez. Consegui depois disso embalá-lo e ele deu o depoimento mais incrível que possas imaginar. Disse-nos que no momento em que estava sendo embalado ele pensava que era por uma tribo de canibais brasileira (assumiu o meu canibalismo) e que seria levado como num ritual para ser morto e comido pela tribo, grupo. E quando escutava o canto do grupo (que aliás parece sempre com Varese), eram gritos de guerra que ele escutava. E quando o colocamos no chão ele deu uma grande risada antes de ser dévoilé,[10] porque pensou que íamos colocá-lo de cabeça para baixo e, quando viu que estava de pé, embora embalado, teve o maior soulagement[11] da sua vida; estava vivo, inteiro etc. Isso tudo porque ele se sentia tão agressivo contra o grupo que ele transferiu para o mesmo esta agressividade! Esse mesmo cara que fez a experiência de descobrir o rosto com as mãos (proposição sem objetos) e se viu nos olhos de uma menina francesa teve um surto de toute-puissance.[12] Chamou esse espaço de “espaço branco” e disse que antes de viver isso ele nunca olhava as pessoas no metrô: baixava os olhos, andava sempre de cabeça baixa na rua, era o último dos alunos, ficando atrás nas salas de aulas, e nunca havia fodido uma branca como as negras da sua tribo. Ora, depois dessa experiência ele começou a olhar as pessoas nos olhos, passou para a primeira fila nas aulas, discutia as matérias todas e possuiu uma mulher branca com a mesma violência e excitação que tinha na sua tribo na África. Não é espantoso? Às vezes desbloqueio gente em uma experiência e, às vezes, preciso de mais tempo. Havia pensado antes de fazer esta psicanálise em me tornar analista, mas agora quero continuar na “fronteira”, pois é isso que sou e não adianta querer ser menos fronteira. Assumir-se; e quando penso nos anos que aqui passei em que não havia esses jovens com quem trabalho o ano todo – pensei no suicídio como uma opção, pois sabia que tinha uma proposição viva mas não sabia como comunicá-la… trinquei dentes de solidão e depois, vindo à Sorbonne, achei a maneira certa que enriquece me dando de volta através da elaboração deles, me gratificando e me limpando também essa barra que sou; e mesmo isso serve de terapia para mim mesma. Às vezes entro lá de quatro e saio de pé. Quanto à parte afetiva, estou a zero, embora ontem tivesse conhecido um cara espetacular, mas que tem tantas defesas que nem sei no que vai dar. E estou ficando fêmea paca, e para quem? Dépense sans réserve,[13]como diria o Yve-Alain Bois. Também percebi que você e outros têm vários instrumentos para se expressarem e eu não tenho nenhum, e é na medida que a proposição emerge que o instrumento tem que ser inventado, e daí a minha impossibilidade de escrever bem, de fazer cinema ou outras coisas bacanas. Você escreve maravilhosamente e isso eu acho fundamental, pois se a arte acabou, no sentido plástico, você supre essa perda através da escrita, que é poética, crítica, criadora e tudo o mais, Deus meu! Te escrevi tanto, mas existem mais mil coisas para te dizer, e vou tentando até acabar a greve do correio que já está na sua quarta semana.

[1] N.S.: “Gozo”, conceito da psicanálise lacaniana.

[2] N.S.: Referência ao psicanalista Pierre Fédida, aluno de Gilles Deleuze que trabalhou com Georges Didi-Huberman e foi terapeuta de Lygia Clark em Paris.

[3] N.S.: “Obsessiva”, referência ao tipo de sua neurose.

[4] N.S.: “Traseiro”.

[5] N.S.: Referência à expressão “avoir des abeilles”, “irritação”.

[6] N.S: Referência ao livro homônimo de Bruno Bettelheim, escrito em 1967.

[7] N.S.: Referência a experiências artísticas em que o público é deslocado da posição de espectador para ganhar um papel ativo e singular. As Proposições foram procedimentos amplamente adotados por Helio Oiticica e Lygia Clark nas décadas de 60 e 70.

[8] N.S.: “Revelação”.

[9] N.S.: “A experiência”.

[10] N.S.: “Revelado”.

[11] N.S.: “Alívio”.

[12] N.S.: “Onipotência”.

[13] N.S.: “Gasto sem reserva”.