Corte [Rio de Janeiro], 15 de agosto de 1876

Maria Augusta, minha sempre adorada noiva,

É hoje dia santo, o maior e o mais popular aqui, na corte. A população inteira, por assim dizer, aflui para a Glória, em cuja festa pobres e ricos apuram, ostentam, exageram todos os requintes do luxo numa capital como esta. Tudo é multidão e bulício, bailes e fogos, alegria e estrépito. Tenho pedidos instantes para tomar parte nessas distrações. Manuelzinho quer que eu vá jantar com ele, para, à noite, com sua família, irmos a uma florida e brilhante reunião em casa de um dos capitalistas daqui. Decididamente, po­rém, não vou. Faço hoje exceção ao meu hábito de estar com aquele meu amigo todo dia. Não saio, senão para ir ao correio registrar esta carta. Fujo assim a esses divertimentos, que me enjoam e entris­tecem. Enquanto todo este mundo fluminense acode para o bairro festivo, a minha festa é a triste festa das minhas saudades, com a imagem da minha querida Cota impressa no meu coração ainda mais vivamente que nos seus retratos. Aqui, sozinho no meu quarto, é que eu serei feliz, feliz dessa felicidade amarga do sofrimento, que é a nutrição única das almas sem esperança. Tudo silencioso em roda de mim convida-me a lembrar-me e refletir. O meu apartamen­to, numa imensa casa como é esta, fica solitário e calado. A famí­lia, com quem quase nunca me encontro senão ao almoço, está longe. Tenho junto de mim, e cubro de beijos, neste momento mesmo, o teu retrato em busto; porque o outro acha-se em mãos do retratis­ta, a quem o confiei, para tirar dele, com o mais primoroso apuro possível, uma lindíssima miniatura colorida de minha formosa noiva com as suas faces coradas como a rosa úmida da manhã, seus cabelos negros como a noite das minhas saudades, seus olhos vivos como o nosso amor. Apesar da alegria dos homens, o dia está brusco, e o céu, sem sol, carregado e monótono. A atmosfera é pesada e sombria como o meu coração. A trovoada, que esta noite tivemos, parece vai repetir-se. Sobre a mesa, de onde te escreve teu noivo, entra-me esta luz turva e triste por uma janela, por onde olho para o pátio, e não tenho outra vista senão a dele e de uma casa próxima, desabitada, porque os seus moradores (uma das filhas casadas do Albino) estão em São Paulo, onde têm de residir por alguns anos. Defronte de mim um piano, por onde muitas mãos já correram, mas que é capaz ainda de sons melodiosos, espera debalde alguém que o anime. Olho para ele, e lembro-me da tua voz, das mãos que tantas vezes me escondias, das harmonias que daquele teclado sairiam ainda se a minha amada noiva estivesse aqui, a meu lado, e pudesse dedilhá-lo; se, em vez de noiva apenas, fosse a companheira que eu suspiro, e que não posso ter. Que extravagân­cia, hein, minha Maria Augusta? Por que há de ser a esperança assim tão incorrigível, que venha com ironias dessas pungir até aos que já não esperam? Por que há de ser o coração tão pueril? Por que há de a fantasia desmentir tanto a realidade? Por que haviam de nascer os que não nasceram senão para suplício seu e dos outros? Por que hão de amar aqueles cujo amor não é senão martírio para aqueles a quem amam? Por que não havia de dar Deus melhor destino às criaturas celestes como tu, querida noiva?

Basta, minha Cota! Antes não te houvesse escrito esta carta. Não sei o que te vai ela fazer, senão mal; mas também não sei o que te havia de dizer agora, senão isto. Perdoa-me, minha adorada noiva, e esquece as minhas alucinações. Amanhã te escreverei de novo.

Muitas e muitas e muitas saudades a mamãe, papai, Adelaide, Dobbert, ao nosso conselheiro Souto e Cazuza.

Tu, querida Maria Augusta, recebe com mil beijos o coração doidamente apaixonado de teu noivo

Rui

Rui Barbosa. Cartas à noiva. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1982, pp. 146-147.