Alexandria, 6 de fevereiro de 1966

Lygia, querida amiga,

“Não há nada melhor que uma carta de Lygia… nem igual” – disse eu à Mafalda, quando recebi sua carta. Mas, dias mais tarde, ao receber seu livro, fiz um acréscimo: “… só um livro da Lygia.” Aconteceu uma coisa engraçadíssima. O carteiro bateu na porta, a Mafalda desceu, recebeu o pacote com o seu O jardim selvagem, abriu-o ali mesmo na porta, anunciou-me o acontecimento, e ficou algum tempo parada, depois subiu a escada devagar e quando chegou ao lugar onde eu estava, a escrever, já tinha lido o primeiro conto e estava encantada com ele. À noite, tivemos um cômico pugilato, para ver quem é que ia ler o livro. Finalmente a Mafalda ganhou a partida, como era de esperar, mas no dia seguinte eu peguei o livro e só larguei depois de terminá-lo. É uma beleza!

Você está uma narradora de primeira ordem. Que riqueza de inventiva, de tipos, de linguagem, de histórias! Tornei a pensar o que sempre penso quando termino de ler um livro seu. Quem conhece a Lygia de perto, isto é, quem convive com ela não imagina que esse monstrinho escreva essas coisas… góticas – como se diz por aqui. Porque você é dos melhores papos que conheço, das presenças mais agradáveis e fáceis. Estar com você é muito bom e a gente não se sente com necessidade de usar nenhuma máscara, de escolher palavras ou ficar na defensiva. E como é que uma menina esportiva, extrovertida produz esse tipo de literatura dramática e densa? Não estou censurando, ao contrário, estou me admirando.

Há contos seus que ficam perseguindo a gente por muito tempo, como o daquela história do jazigo perpétuo e dos dois amantes. “O Espartilho” é uma novela. Se quisesse, você poderia fazer com aquela gente um romance de 500 páginas. (Uma pena que lhe tenham feito uma capa tão inexpressiva. Não está de acordo com o livro. E como efeito decorativo também me parece fraca. Mas isso não tem nada de ver com a literatura.) Lygia, minha amiga, você did it again! Um abração!

Fiquei muito contente, muito feliz mesmo com as coisas que você diz de O senhor embaixador.[1] Vai ser publicado aqui lá por outubro deste ano. A Noite[2] está com a opção para cinema vendida a E.G. Marshall, aquele ator que aparece em “Os Defensores”, na TV.

Como acho que lhe contei, eu tinha prometido ao Aguilar, que vai publicar minha Ficção completa, uma autobiografia. Comecei a escrever o “esboço” e quando “caí em si” estava fazendo uma coisa grande que me ocupou vários meses. Só agora estou chegando ao fim desse trabalho, que muito me preocupou por questões de tempo. Não cumpri a promessa de entregá-lo no prazo prometido. É uma autobiografia compacta, mas dá 200 páginas de livro. Para 60 anos não creio que seja demais. O Bertaso quer que eu amplie essa história e faça um livro de memórias. A compacta tem o título de O escritor diante do espelho. O livro de memórias, se sair, se chamará Solo de clarineta.[3]

Vou lhe contar agora a viagem que Mafalda e eu vamos fazer. Sairemos de Nova York dia 12 de março, com a Alitalia, e desceremos em Roma para uma visita à Sicília e algumas cidades como Florença e Veneza. Dia 2 de abril estaremos em Israel, a convite de seu governo, para passar lá todo o mês. Voltaremos a Roma em princípios de maio e, de ônibus, subiremos pela costa ligúrica até a França, parando rapidamente em Cannes, Marselha, Arles, Nîmes, Avignon, Toulouse (onde farei uma conferência na universidade) e depois entraremos na Espanha, onde tenho de falar em El Ateneo de Madrid[4] dia 18. Depois, um pulinho a Portugal. Passaremos todo o junho em Paris e voltaremos para Nova York em princípios de julho. Esperamos estar no Brasil em setembro próximo. Que lhe parece a excursão?

Tivemos uma nevasca dos diabos e ficamos ilhados em casa durante uma semana. Eu costumo todos os dias caminhar uma hora. O remédio foi andar dentro de casa, dum lado para outro. Os netos são os bichos mais turbulentos do mundo, mas muito engraçados.

Os programas de TV andam miseráveis. O gosto popular tem caído muito.

Essa guerra no Vietnã está tumultuando a opinião deste país. Acho que os americanos cometeram outro erro, talvez pior que o da Coreia.

No momento em que lhe escrevo, pela janela vejo as árvores nuas do quintal, a neve no chão e, brincando por entre os troncos pardos e brancos, os meus netos com mantas e camisetas vermelhas e azuis. Parece um quadro de Bruegel! – Sinto muita saudade do Brasil. Se estou aqui é por motivos puramente sentimentais. Não tenho mais curiosidades com relação aos States.

Faço votos para que vocês todos estejam muito felizes. Dê, por mim, um abraço no Paulo Emílio e outro no Gofredinho. Para você um abracíssimo deste seu velho amigo

Erico

Arquivo Lygia Fagundes Telles/ Acervo IMS.

[1] N.S.: Livro de Erico Verissimo publicado em 1965.
[2] N.S.: Novela de Erico Verissimo publicada em 1954. O filme Noite, dirigido por Gilberto Loureiro e baseado na novela homônima do escritor, seria lançado em 1985.
[3] N.S.: O primeiro volume de Solo de clarineta é de 1973. Abrange a infância de Erico até a década de 1950, quando o americano Dave Jaffe pede Clarissa, filha de Erico, em casamento. O segundo, que começa com as bodas de Clarissa, registra as andanças do escritor pelos Estados Unidos e pela Europa. Inacabada, essa segunda parte foi organizada postumamente por Flávio Loureiro Chaves e publicada em 1976.
[4] N.S.: Sociedade madrilenha que se define como instituição científica, literária e artística. Fica na capital espanhola.