Vigo, 2 de setembro de 1896

Florindo,

Tua carta foi a minha alegria. Dei graças aos céus em a recebendo, porque supunha já que não existias, dúvida que me trazia o espírito atribulado, porque tu não és simplesmente um homem, tu és uma geração, és um símbolo.

Ouve lá, oh tu! — se te agrada saber que é grata a minha impressão de Lisboa e de seus ra­pazes, sabe então, alfacinha, que não pode ser me­lhor a saudade que tenho dessa terra azul em que durante vinte rápidos dias fui feliz e fui alegre. Azul e branca, é o que ela é! Azul pelo seu Tejo, Amazonas doméstico e sábio, graças aos rouxinóis que lhe ensinaram as melodias do amor e da melan­colia; e branca por aquelas nuvens baixas que se debruçam sobre as cordilheiras de Cintra e de Al­mada; nuvens que parecem cabedal dos místicos arquitetos dos Jerônimos e de Belém, porque formam no espaço ideal como que o novelo de alvo linho de que os gênios caprichosos daquele tempo heroico fizeram as rendas milagrosas daquelas maravilhas de pedra. Visitei embevecido todos esses baluartes ren­dilhados da fé católica, e senti minha alma cantar as orações guerreiras do infante dom Henrique e do mísero dom Duarte, o cativo de Tânger.[1] Compreendi Nun’Álvares, contemplando as abóbadas dos Jerô­nimos e voei aos meus primeiros sonhos de escritor defronte do túmulo de Herculano, cuja alma esvoaça ainda por entre os capitéis da divina mesquita, como a branca andorinha ou o gavião branco de que fala Garrett. Por Castela e Santiago! por Portugal e São Jorge, meu Florindo, que um dos melhores mo­mentos da minha vida foi quando pisei as terras de Afonso Henriques! E que rapazes! Como os 50 e tantos anos do Marquês de Franco não espantam a quem quer que seja! Como o Tomás Ribeiro é moço! Como o Bordalo é doido! Como o Ramalho é encan­tador! Se soubesses pelo miúdo como vivi com essa gente e com outra muita, beijado pela nossa Cenira Polônio[2] e amado (parece incrível) pela mais adorável criatura que os meus joelhos apertaram em críticos instantes de ventura. Até rimou, caramba!

E já que te falei em amor, e também porque nisso me falaste em tua carta, sabe que essa adorável pessoa que se chama Maria Penha foi para mim a náiade[3] gentil, uma Vênus de hoje, que aos meus olhos não veio das espumas do oceano como a outra da Grécia, mas que saiu armada com o seu sorriso branco e com o seu olhar azul das ondinas do Tejo, que lhe serviu de berço.

Essa bela retardatária (retardatária para mim, que já me suponho incapaz de ser amado por uma moça), levou-me pela mão aos castelos do sonho.

Formosa, inteligente e original, essa bela mu­lher, depois de fazer-me visitar museus e exposi­ções de arte, levou-me um dia, pelo primeiro sol, à “Tapada da Ajuda”.[4] Ah, Florindo! que manhã de maravilhas! O sol era um vinho capitoso cor de ouro velho, que embriagava a alma e os campos verdes em que havia delírios espirituais. Uma ligeira caleça com quatro rodas puxou-nos para longe das velhas casarias do marquês de Pombal e, quando demos por nós, ríamo-nos abraçados ao fundo do carro, com­binando o almoço numa tasca saloia;[5] e, a deslizarmos entre moitões[6] de acácias e lilases, que a primavera enflorava como para as bodas de dois boêmios felizes, os nossos olhos, a nossa fala e as nossas mãos fize­ram uma congratulação internacional muito mais positiva do que a do Assis Brasil.

Como estava bela, a minha bela Maria! Com um arranco, sem transição na conversa chamei-a para meu peito e tomei-lhe a boca com a minha boca, empolgando-a, e, sobrepujando-a, fi-la desmaiar de prazer, balbuciando no espasmo: – Tonto! Olha que o cocheiro pode ver! Cuidado! Os lavradores te observam!

Qual lavradores, nem qual carapuças. Tive-a inteira e morta de gozo na ação vitoriosa daquela luta que pôs em confusão os seus secretos cabelos loiros com a negrura dos meus cabelos que não apanham sol.

E ela, depois da doida usurpação, deixou cair a dourada cabeça no meu colo, suspirando devaga­rinho, como queixosa do que eu lhe fizera, mas logo ergueu o rosto, desfraldou o olhar, já rindo, e apanhou-me de novo a boca, agora espontaneamente com gula, como se quisesse, em troco miúdo de beijos, restituir-me a soma de amor que lhe dei de só vez… E entre agradecida e queixosa murmurou ainda com um beijo: — Selvagem!

E ouvi em torno da vitória do nosso amor toda a natureza cantar também vitoriosa. Mas, por entre o canto dos pássaros e por entre o murmurar das selvas, parecia-me distinguir um som guerreiro mais estridente. Separávamos os lábios — era tempo; três batedores, ricamente agaloados batiam a estrada já defronte do nosso carro, e, logo atrás, entre cornetas e picadores de lança em punho, irradiou o trem de dona Maria Pia, a augusta mãe de dom Carlos, que estava em passeio nas suas terras da Tapada.

Passou por nós e saudou-nos com um sorriso, menos sedutor que o da encantadora rainha sua nora, mas que parecia dizer-nos tristemente: — Con­tinuem, eu finjo que não vejo! E, daí a pouco almo­çávamos, e ríamos e gozávamos, e… Mas, para que continuar? Sabe que essa bela mulher, que traz nos olhos e nos dentes as gloriosas cores do seu e do teu país, ofereceu-me depois um jantar, em sua casa, em que fui peito a peito brindado pelos mais finos espíritos da geração artística e literária de Por­tugal.

Cáspite! Se não houvesse mil outros motivos, este seria bastante para te dizer que em Lisboa — a alma cresce e o coração se alarga!

Teu

Aluísio

Aluísio Azevedo. O touro negro. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1961, pp. 198-202.

[1] N.S.: Duarte I foi rei de Portugal e iniciou em 1437 uma campanha de reconquista do norte da África, mas foi derrotado. Dom Fernando, o mais novo dos seus irmãos, foi capturado e morreu no Marrocos, já que Portugal recusou-se a pagar o resgate, que se constituía na devolução da cidade de Ceuta.
[2] N.S.: Atriz brasileira.
[3] N.S.: Na mitologia grega, ninfa das fontes e dos rios.
[4] N.S.: Parque botânico em Lisboa, Portugal.
[5] N.S.: Rústica, camponesa.
[6] N.S.: Caixa de madeira com uma só roldana.