Professor universitário de intensa e brilhante vida intelectual, Roberto Ventura dedicou-se ao longo de sua vida ao estudo de Os sertões, obra que o fascinava não só pelo hibridismo de uma narrativa que transita entre literatura, história e ciência, mas pela interpretação original que propõe do Brasil.
A leitura da obra instigou o interesse pela vida do autor, sobre a qual Ventura se debruçou por mais de uma década a fim de escrever a biografia que pretendia finalizar em 2002, ano do centenário de Os sertões. Um acidente fatal, no entanto, em agosto daquele ano, interrompeu sua vida e o projeto. O que ficou de Euclides da Cunha: uma biografia, título que daria à sua obra, foi reunido em Retrato interrompido da vida de Euclides da Cunha, de 2003, que teve organização de Mario Cesar Carvalho e José Carlos Barreto de Santana.
Segundo este último, em um dos textos de abertura do livro, Ventura “sabia das dificuldades que o aguardavam na busca para trazer novas contribuições no âmbito dos estudos euclidianos. Optou por realizar um rigoroso e quase obsessivo levantamento documental”. E é o que se observa no arquivo de Ventura, sob a guarda do Instituto Moreira Salles desde 2005. Dentre os quase 105 cadernos manuscritos de fichamentos e anotações diversas e as centenas de recortes de jornais e revistas, além de artigos que seriam publicados na Folha de S. Paulo ou em outros jornais e revistas, destacam-se muitas reproduções de documentos de Euclides da Cunha, como fotografias de cartas recebidas ou remetidas pelo escritor a Reinaldo Porchat, Vicente de Carvalho, Monteiro Lobato, Coelho Neto, Francisco de Escobar, a quem enviou carta antológica, Academia Brasileira de Letras, na qual indica seu voto para a cadeira que pertencia a José do Patrocínio, e Machado de Assis, dentre outros.
Em uma carta, o autor de Dom Casmurro comenta a eleição de Euclides para a Academia Brasileira de Letras, ocorrida um ano após a publicação de Os sertões: “Não é mister dizer-lhe o prazer que tivemos na sua eleição para a Academia, e pela alta votação que lhe coube, tão merecida. Os poucos que, por anteriores obrigações, não lhe deram o voto, estou que ficaram igualmente satisfeitos. Como membros da Academia, estimarão que esta se fortaleça com escolhas tais”.
Outra carta importante fotografada por Ventura é a enviada por Dilermando de Assis a Ana Ribeiro, mulher de Euclides. Os dois iniciaram um romance em 1905, na Pensão Monat, no Rio de Janeiro, quando Euclides se encontrava na Amazônia, na missão de levantamento cartográfico das cabeceiras do Rio Purus. Ao retornar ao Rio em 1906, Euclides encontrou Ana grávida de três meses do menino Mauro, que morreu com sete dias de vida devido a uma debilidade congênita.
A carta do amante ao seu “idolatrado amor” foi escrita em 6 de outubro de 1909, menos de dois meses depois da tragédia da Piedade, como ficou conhecido o assassinato de Euclides por Dilermando em troca de tiros que envolveu ainda Dinorá, irmão de Dilermando, no dia 15 de agosto do mesmo ano. Em tom apaixonado, ele escreve: “Experimento mesmo um saboroso deleite que me invade a alma, à proporção que as tuas palavras me envolvem o coração, tamanha, tão poderoso que se me afigura uma ascensão aos piáculos da glória. […] que tenho-te como esposa é difícil duvidar, pois só uma legítima consorte poderá assim inundar de prazeres e consolações a alma angustiada de um proscrito”.
Dilermando se casaria realmente com Ana em 1911, após ser absolvido no processo pela morte de Euclides e, posteriormente, pela de Euclides da Cunha Filho, o Quidinho, que tentara vingar o pai. O casamento durou até 1926, quando Ana de Assis, nome que adotara com o casamento, mudou-se para a ilha de Paquetá, onde viveu sozinha até o dia 12 de maio de 1951, quando morreu vítima de um câncer de pulmão.