Numa carta dirigida ao escritor português Miguel Torga, enviada de Belgrado, em Janeiro de 1950, Ribeiro Couto, dando conta da leitura do 4º volume do Diário do amigo, serve-se da metáfora ferroviária para caracterizar duas vertentes da escrita deste autor:

Percorrendo, fascinado e comovido, este 4º volume, encontro aqui toda a medida da tua grandeza, e também o curioso paralelismo, as tuas curiosas linhas duplas (os italianos chamam “binário” às linhas ferroviárias, e a expressão é gráfica): e é que na poesia tens doçuras de menino doente, e na prosa tens maneiras de valentão de feira, com um varapau (aliás luminoso, a despedir relâmpagos).

São frequentes as apreciações elogiosas à obra de Torga, pseudônimo de Adolfo Correia da Rocha, no seu epistolário passivo, da parte dos mais diversos correspondentes.[1] O que singulariza essas observações, nas cartas que lhe são dirigidas por Ribeiro Couto, é o tom descontraído do poeta, romancista e diplomata brasileiro, num registro muitas vezes próximo da humorada conversação. Aliás, este timbre é algo que se impõe em relação a quaisquer assuntos, em termos que não encontramos em nenhum outro missivista.

Também é frequente vermos Ribeiro Couto apoiando-se em tópicos do universo literário do destinatário. A metáfora ferroviária reaparece, noutra carta, recontextualizando um lugar da obra, para sublinhar o motivo da distância vs. proximidade:

Muitas vezes tenho feito contigo a viagem naquele comboio, e contigo repito: “Os campos, imprecisos, nos meus olhos, / Vão de braços abertos às montanhas”. Voltarei um dia, em carne e osso, a tomar comboios em Portugal? (Belgrado, 3.3.1952).

Três anos depois, deparamos novamente com a referência ao mesmo meio de transporte; agora a literalidade da situação adequa-se à estratégia enunciativa da carta, e Couto volta a aproximar-se da norma do português europeu, num admirável modo de empatia com o universo torguiano:

Belgrado, 21 de Março de 1955

Miguelão,

Quase que me fazes perder o comboio. Tenho de fazer um esforço para interromper a leitura do Traço de União, que acabo de receber, nesta manhã, no instante mesmo em que três maletas abrem bocas ansiosas, à espera de objectos a arrumar. […]
Do teu livro, que te dizer? Já li o prefácio e li a carta que me diriges. Como te agradecer o que tão lucidamente e tão apaixonadamente escreves do Brasil? Este prefácio é a coisa mais substancial que se escreveu sobre o Brasil contemporâneo. […]Não posso continuar. As maletas me esperam. O comboio também.

À semelhança do que ocorre em muitos romances ou contos, também na obra de Miguel Torga encontramos o expressivo recurso a formas epistolares (cartas e bilhetes) insertas nas suas narrativas, como se pode ler no romance autobiográfico A criação do mundo. Outro registro em quadro diverso, na obra deste autor, é o dos prefácios em forma de “carta ao leitor”, ou então o comparecimento da carta aberta, com propósito interventivo, publicada em jornal e posteriormente coligida em livro (veja-se em Fogo preso a “Carta Vagante” para Natália Correia), ou ainda a carta com destinatário real, publicada em livro pela primeira vez, sem ter sido anteriormente enviada ao receptor pelo correio. É este o caso da “Carta a Ribeiro Couto”, que fecha o livro Traço de união, publicado em 1955:

Estive, realmente, na tua terra, no teu Brasil. Fui lá matar saudades. Um amigo prudente, que sabe muito destas coisas da vida, afirma a pés juntos que as saudades não se devem matar, e que, em matéria de lugares amados, o melhor é conservá-los numa redoma de ausência. Mas eu sou de opinião contrária. Sempre que posso, vou onde as recordações me chamam. Por isso aproveitei uma aberta das circunstâncias, e meti-me a caminho.

A carta de Ribeiro Couto, de 21 de Março de 1955, constitui um explícito agradecimento pela recepção de Traço de união. O subtítulo deste livro (“Temas portugueses e brasileiros”) ajuda a delimitar o âmbito do volume: a maioria dos textos aqui inseridos decorre de uma circunstância específica: uma viagem do autor ao Brasil, no ano anterior. Aliás, o livro recolhe conferências e outras alocuções pronunciadas nesse ano e ainda outros textos relacionados com o foco em epígrafe. Também ficamos a perceber que o início da “Carta a Ribeiro Couto”, acima transcrito, dialoga claramente com uma missiva do amigo brasileiro, datada de Novembro de 1954:

Belgrado, 10.11.1954

Meu querido Adolfo,
Soube que estiveste no Brasil. Esperava uma carta tua, com impressões… Nada! Calas, ó infame!
E eis que, em vez da prosa epistolar e memorativa, me mandas estas Penas do purgatório – formosas penas que tão altos versos despertam.
«Acordado e a dormir», também tenho as minhas penitências. Tanto melhor! O pior seria uma vida vazia. A minha é cheia de penas também…
Olha, se eu morasse em Portugal, divulgaria um afectuoso trocadilho:
«Penas do Torgatório»
Beijos na Andrée. Teu
Ribeiro Couto

Não foi um motivo de ordem pessoal que esteve na origem da deslocação de Torga ao Brasil, em 1954, ainda que simbolicamente a viagem tenha cumprido, nesse plano, um particular significado, tendo o autor aproveitado a ocasião para rever, em Minas Gerais, os lugares onde passara cinco anos decisivos da sua adolescência.

Por ocasião da visita do escritor português ao Brasil, Ribeiro Couto encontrava-se em Belgrado, no posto diplomático, como ministro plenipotenciário, estando naturalmente a par das notícias culturais do seu país, e a viagem do amigo não lhe passou despercebida, pois prendeu-se com a participação no importante Congresso Internacional de Escritores, em São Paulo, no mês de agosto. Algumas missivas dão conta desse momento, como se pode ler nas palavras enviadas por Lygia Fagundes Telles ao escritor português.

O epistolário passivo de Torga apresenta esboços de um retrato inacabado que vem apenas confirmar o que a leitura atenta da obra mostra: a ultrapassagem da imagem estereotipada do poeta isolado, ainda que dominantemente prevaleçam os traços de um retrato próximo daquele que o próprio escritor quis difundir. A este respeito, fora do epistolário, valerá a pena ler no livro Janelas verdes, de Murilo Mendes, o impressivo relato de uma visita que este fez a Torga, em Coimbra. Murilo conta que na véspera tivera um pesadelo: “No alto da torre um homem debruçado ao muro me pergunta: ‘Que deseja?’ Respondo: ‘Visitar o Dr. Miguel Torga’. Imediatamente abaixam a ponte levadiça, sendo eu atacado sem transição por uma alcateia de lobos; acordo em suor”. A visita acabará por contrariar o pesadelo.

Entre os correspondentes brasileiros de Torga encontramos nomes como Manuel Bandeira, Cecília Meireles e Fernando Ferreira de Loanda, na década de 1940 (a fase de consagração do autor de Contos da montanha), ou Jorge Amado, na última década de vida do autor português. Mas sem dúvida alguma que a correspondência mais numerosa e mais representativa é aquela que lhe é dirigida por Ribeiro Couto. E se estas cartas apresentam achegas sobre Torga, oferecem também elementos não menos importantes para o delineamento de um retrato do próprio emissor, concretamente sobre sua frontalidade e sua generosidade.

O conjunto das cartas dá a conhecer a história duma amizade. No princípio lemos as palavras de gratidão de Ribeiro Couto pelo acolhimento dos anfitriões (Torga e a mulher, Andrée Crabbé Rocha) numa visita em Coimbra. E logo nessa carta (de16 de junho de 1944) deparamos com a inversão do difundido lugar-comum que cristalizou a imagem do escritor misantropo: “O espadagão virou peninha de sabiá, propiciadora de carícias – e vara mágica, fazendo surgir da terra um ror de maravilhas (inclusive a torre de Tentúgal, impossível de ser apreciada com o estômago vazio).”

Nas cartas de 1944 e 1945, existe ainda alguma formalidade da parte de Ribeiro Couto no modo de se dirigir a Torga (“Meu Caro Torga”; “Meu Caro Miguel Torga”). A partir daqui são variadíssimos e excêntricos os modos de aproximação ao autor de Vindima. Um dos mais óbvios traços distintivos destas cartas é justamente o que se manifesta na forma surpreendente como o autor dessas cartas fala com o amigo português.

A variabilidade das formas de tratamento dá conta da maneira como a imaginação e o afecto se associam em invulgares enunciações. Em 1946, numa carta de 24 de abril, encontramos um eco rosiano, quando Ribeiro Couto escreve ao “Miguelão Miguelinho”. Pode observar-se, neste conjunto de cartas, a dominância do aumentativo do nome próprio (“Miguelão”) e do diminutivo do sobrenome (“Torguinha”), muitas vezes acoplados, o que, de certo modo, vem reforçar a leitura apontada pela expressiva metáfora ferroviária das “linhas duplas”,  na carta de 18 de janeiro de 1950.

Um aspecto muito curioso nesta interlocução diz respeito à forma como Ribeiro Couto interpela o amigo, na qualidade de médico, chegando a consultá-lo por carta, e mais uma vez a tónica é dada a partir de um singular uso de trocadilhos: “Ai, meu pernudo senhor médico doutor Adolfo Rocha, como sabes encontrar bem as imagens na tua própria anatomia!”; “Alegria de ver-te sempre grande e cada vez maior, quer Miguel, quer Adolfo, poeto-rino-conímbrico-camónicologista”.

O que parece ser um fecho é sempre uma abertura. A “Carta a Ribeiro Couto” ocupa um lugar de relevo na obra de Torga, surgindo ali o embrião daquilo que vinte anos mais tarde seria relatado em O Sexto Dia de A Criação do Mundo, onde é diegeticamente destacada a viagem do protagonista ao Brasil,em 1954. Por seu turno, na última carta de Ribeiro Couto, encontrada no espólio de Torga (a missiva de 21 de março 1955), é eloquente a abertura, no modo de agradecimento, no jeito brincalhão com que tão seriamente celebra a amizade:

À minha volta, torno a escrever-te.
Grande Miguel, pelo carinho com que me dedicaste a carta final, vai aqui um beijo no teu áspero focinho de almocreve transmontano.

[1] Este epistolário, maioritariamente inédito, encontra-se na posse da filha do escritor, Professora Clara Crabbé Rocha, a quem agradeço a autorização para divulgar os passos inéditos das cartas aqui transcritas.