Gilberto Freyre conclui o prefácio da primeira edição de Casa-grande & senzala, lançada no Rio de Janeiro em dezembro de 1933, com o seguinte agradecimento:

Um nome me falta associar a este ensaio: o do meu amigo Rodrigo M. F. de Andrade. Foi quem me animou a escrevê-lo e a publicá-lo.

A presença de Rodrigo na elaboração e materialização da célebre e importantíssima peça de nossa Brasiliana fica assim singularizada na expressão “Foi quem”.  Não é coisa pouca.

Impressão, aliás, reforçada na correspondência mantida pelos dois amigos no período imediato que antecede a finalização e a publicação do livro e até pouco depois do lançamento, entre novembro de 1932 e janeiro de 1934.

No final de 1932, Gilberto acabara de chegar de Lisboa, onde estivera exilado desde a Revolução de 1930, por ter sido, de 1927 a 1930, chefe de gabinete do então governador de Pernambuco, Estácio Coimbra, durante a Primeira República.

As citações abaixo, extraídas dessas cartas, refletem, na sua maioria, o pitoresco da ansiedade de um autor apressado em finalizar obra que sabia de importância, embora, aqui e acolá, elas possam também indicar algum dado mais relevante para o contexto da sua recepção.

Assim, na carta do Recife, de 4 de novembro de 1932, encontramos: 

[…] Mas antes de qualquer coisa: vai nova porção do livro e o portador é o meu primo e amigo de quem frequentemente lhe tenho falado Ulisses Pernambucano. Há um mês que estava essa maçaroca pronta, à espera de portador idôneo que agora surgiu magnífico, na pessoa de Ulisses. Na casa dele é que tenho estado estes últimos meses como lhe terá dito Cícero [Dias]. […] Alheando-me o mais que possível do desagradável ambiente brasileiro tenho trabalhado intensamente no livro […] Terminados os quatro capítulos, o último posso deixar para escrever aí para começos de dezembro. Vamos ver.

Poucos dias depois, em 15 de novembro, volta a escrever a Rodrigo, com uma curiosa referência ao que seria o título original de Casa-grande & senzala:

Seu Rodrigo, já estou com mais 70 páginas datilografadas, prontas – mal datilografadas é certo – O fim do 1º capítulo, o 2º e começo do 3º. Não mando porque não sabia deste portador e não preparei: Peço-lhe recomendar cuidado em se respeitando a ortografia das transcrições. A minha pode ficar à vontade do editor. Recebeu uma carta minha? Outra coisa, o título do livro, já não fica aquele, mas este menos popular e mais scholarly: vida sexual e de família no Brasil escravagista. Talvez seja melhor não anunciar nada por ora; mas é este o título, se não acho melhor.

E, um mês após, 19 de dezembro de 1932, sublinha a sua satisfação com o capítulo sobre a figura da pessoa negra, assunto que viria a ter dois capítulos, o quarto e o quinto, na versão definitiva:

Escrevo-lhe às presas para apresentar um amigo meu que segue hoje para o Rio. Não fosse ele tão de supetão e poderia talvez levar o 3º capítulo, que terminei; mas do qual a datilógrafa […] só me deu parte, prometendo a outra para o sábado. Gostei desse 3º capítulo e estou agora certo que é também meu elemento – o negro. Em janeiro, sem falta está tudo acabado – e os editores com um livro de 500, e não de 250 ou 300 páginas com ilustrações interessantíssimas que está me preparando, com a sua técnica de fotógrafo, o José Maria [Carneiro de Albuquerque e Melo], diretor da BP [Biblioteca Pública de Pernambuco].

Em 25 de abril de 1933, registra-se a participação de Manuel Bandeira na revisão do manuscrito:

Um abraço. Seguem 90 páginas do [manuscrito]. 90 oficialmente – na verdade maior número como verá – contando as páginas intercaladas. Tem sido um trabalho enorme. Felizmente dentro de dez dias estará tudo pronto para seguir. O resto irá por Manuel, irmão de Cícero – que vai nos primeiros dias de maio –; passe o calhamaço a Bandeira. Diga-lhe que faltam duas referências, Dampier e o nome completo de Bates.

Na véspera de 1933, dia de ano, o capítulo sobre a pessoa negra já havia assumido sua forma final, em dois capítulos:

Meu trabalho vai indo. Agora estou […] completando o 4º capítulo. O 5º e último irá rápido e já tenho em notas, quase pronto, o prefácio. Estou ansioso para terminar o trabalho. Infelizmente estou sem auxílio de datilógrafo, apenas com a judia alemã que demora, leva dias sem vir. Numa impontualidade brasileira. E, entretanto, tem sido paga – dizem até que mais do que geralmente pedem os datilógrafos: a 2 $ a [página].

E nos 20 de janeiro de 1933:         

Estou por aqui sem novidades. E no último capítulo do livro […] Este termino-o mesmo em janeiro. E penso que numa semana – a 1ª de fevereiro – termino todo o trabalho de cópias. De modo que em abril, antes mesmo da Constituinte, pode estar na sua Casa-grande e senzala.

Em 17 de junho de 1933, o livro estava praticamente terminado e o autor já trata dos detalhes materiais da edição:

Recebi sua carta (por avião) em que acusa o recebimento da última parte do livro. Falta a introdução, que está pronta – umas trinta páginas – e mais umas notas para ser intercaladas. Faltam também algumas fotografias – tudo pronto, num gordo envelope azul, que não segue por falta de portador de confiança. O Correio do nosso Zé Américo [José Américo de Almeida] infelizmente não merece fé. Não falo aereamente – mas baseado em experiência. Essa introdução ou prefácio; ou misto de introdução e prefácio – é melhor não lhe dar nenhum nome, e publicá-lo logo abaixo da vinheta. Deve ir em itálico, correspondendo ao tipo 10, em que acho que deve ser impresso o livro, no formato, mais ou menos, daquela formação histórica de seu conterrâneo Calógeras.

E, a bordo do navio Artigas, a caminho de Salvador, no dia 11 de novembro de 1933:

Espero que a leitura do resto do livro esteja lhe causando, e a Manuel, o mínimo de aborrecimento. Nunca pensei lhe causar tanta aporrinhação.

E, finalmente, como pièce de resistence, o registro da célebre rejeição violenta de Oliveira Viana a Casa grande & senzala.  O gesto afeta particularmente Gilberto Freyre, que se estende em justificativas defensivas, na carta dos 20 de janeiro de 1934:

Recebi sua carta. Também a cópia da que o Dr. Oliveira Vianna mandou aos editores, devolvendo o exemplar de C.&.S. [Casa-grande & senzala]. Lamento que o Dr. Oliveira Vianna se tenha zangado tanto. Quando escrevia que para o eminente sociólogo o Brasil fora colonizado e organizado por dólico-louros (é claro que não até os nossos dias, mas fundamentalmente) foi baseando-me no que ele escreveu no seu Evolução do povo brasileiro (veja a 2ª edição,  páginas 126-131), principalmente nas palavras: “só a presença nas suas veias (dos colonizadores que fundaram e organizaram todo o Brasil) de glóbulos de sangue germânico pode explicar a sua combatividade, o seu nomadismo, essa mobilidade incoercível que nos faz irradiar para todo o Brasil, ao norte e ao sul, em menos de um século”.

 Sempre fundado no critério de ser o dólico-louro “o grande migrador” e o braquicéfalo e de pequena estatura, caracteristicamente sedentário. “Assim, só depois das novas terras deslavradas pela intrepidez desses pioneiros audazes, e exploradas, e amansadas, e povoadas” – por conseguinte organizadas – é que teriam vindo outros, menos intrépidos. Mas já a obra de colonização e organização estava toda feita. Foi o que entendeu também M. [Manuel] Bonfim quando disse no seu Brasil na América (1927) que para o Sr. O. [Oliveira] Vianna “eram louros, compridos de cabeça os colonizadores que fizeram o Brasil”. Pois não explica o Dr. O. [Oliveira] Vianna “a desaparição desses elementos louros e de alta estatura da península, pela imigração para os novos mundos descobertos?”

No preparo das notas para o meu trabalho servi-me da 1ª edição da Evolução. Desconhecia portanto estas palavras, tão significativas, que vemos na 2ª: “um estudo mais profundo dos problemas da Raça e o crescente contato, em que entrei, com as grandes fontes de elaboração científica nesse domínio, renovaram profundamente minhas ideias sobre este e outros problemas de etnologia e de antropossociologia”.

[…] As explicações que vão acima, são apenas para v. [você] e para os íntimos. Mais ninguém.