Dentro de uma pasta, que por sua vez está dentro de uma caixa de madeira revestida de veludo, que por sua vez está dentro de um cofre cuja temperatura é controlada em cerca de 20 graus e a umidade do ar em 50%. Assim se guarda aquela que é provavelmente a mais importante carta brasileira, ou pelo menos a primeira a ser escrita no país: a mensagem que Pero Vaz de Caminha endereçou ao rei d. Manuel no dia 1 de maio de 1500 relatando a chegada dos portugueses às terras que viriam a ser chamadas de Brasil.
A carta está digitalizada e disponibilizada gratuitamente na página web do Arquivo Nacional de Portugal, mas as consultas presenciais são restritas. É preciso fazer uma solicitação justificada e esperar a resposta. Foi o que fiz. Expliquei que pretendia escrever para o Correio IMS sobre o documento, e meu pedido foi aceito. Fui recebido na Torre do Tombo, em Lisboa, por uma funcionária que me mostrou as instalações do edifício construído especialmente para ser o Arquivo Nacional português e me contou um pouco sobre os 800 séculos de história ali guardados.
E cá estou diante de Silvestre Lacerda, o simpático diretor do Arquivo, com seu bigode e cavanhaque grisalhos à D’Artagnan, que calça as luvas brancas para tirar da caixa de madeira (trazida do cofre num carrinho) a pasta em que se lê: Vera Cruz, Brasil, 1500/05/01. Dentro dela estão sete folhas, que dobradas ao meio fazem um caderno. Lacerda retira cuidadosamente o documento da caixa e o pousa sobre a mesa: “Aqui está”, diz, satisfeito. Diante de nós, em estado de conservação admirável, a carta.
Escrita em papel de trapo (semelhante a um tecido, o que explica ter perdurado cinco séculos), a mensagem foi redigida à pena com uma tinta “ferro-gálica”. Segundo as restauradoras da Torre do Tombo, Caminha foi muito feliz na composição química que obteve: conseguiu uma tinta que não se apagou com o tempo, não manchou o escrito e nem corroeu o papel – há documentos daquela época, e inclusive mais recentes, cujo conteúdo já é impossível de ser lido. Além da qualidade do papel e da tinta, a carta também teve um pouco de sorte para ter sobrevivido até hoje. Fez uma viagem transoceânica em um tempo em que não eram raros os naufrágios. Ao chegar a Portugal, foi guardada no Castelo de São Jorge, numa das torres – que viria a ser conhecida como Torre do Tombo, a original. Ali esteve até o grande terremoto que arrasou Lisboa em 1755. A edificação ruiu, o documento foi resgatado e passou meses exposto à intempérie, vagou por distintos lugares até ser levado ao Mosteiro de São Bento da Saúde, hoje sede do Parlamento de Portugal e residência oficial do Presidente da República. Lá permaneceu até 1990, quando foi encaminhado, enfim, à nova Torre do Tombo.
Atualmente a missiva de Caminha leva uma vida de pouco contato com pessoas e luz. Só saiu de seu repouso duas vezes. Regressou ao Brasil no ano 2000 para as celebrações dos 500 anos do “Descobrimento”, e em 2016 esteve em Belmonte, terra de nascimento de Pedro Álvares Cabral, para uma exposição sobre o Novo Mundo. Desde então, a carta é retirada apenas para visitas “relâmpago”, como a que fiz em condição de pesquisador. De acordo com o protocolo de conservação, o documento não deve ficar exposto à luz por mais de três meses e, após a exposição, deve descansar no cofre por três anos.
Em 2005, a carta de Pero Vaz de Caminha foi incluída na lista de documentos do Registro da Memória do Mundo da Unesco – é o primeiro escrito em português a receber o reconhecimento. Não se sabe ao certo por quantos restauros passaram as folhas de Caminha desde 1500 (o último procedimento foi antes de viajar ao Brasil em 2000). O que se sabe é que hoje, da maneira como está e como é conservada, pode perfeitamente “viver” mais uns tantos séculos.
Seria a carta de Caminha o documento mais importante do Arquivo? Pergunto a Lacerda, que responde: “Para os brasileiros, sem dúvida. Para nós portugueses penso que é a Bula Manifestis Probatum. Digamos que esse seria o primeiro [documento] que eu salvaria de um hipotético incêndio”. Redigida em 1179, a bula é o reconhecimento, por parte do Papa Alexandre III, de Portugal como estado independente, então governado pelo rei d. Afonso Henriques. É uma espécie de certidão de nascimento do país.
No final da visita, Maria Trindade Serralheiro, a funcionária que me recebeu na Torre do Tombo, me acompanha até à porta do edifício. Despede-se e diz, quase cochichando: “Tivemos sorte, eu também ainda não a tinha visto. Trabalho cá há dez anos e não tinha tido a oportunidade”. Sorri, e sorrio de volta, agradecidos pelo nosso dia de sorte.