Em 1968, o programa Theatre 625 figurava na grade da emissora britânica BBC. A antologia de séries dramáticas transmitiu, no dia 22 de maio, The Pistol Shot, uma adaptação de Nicholas Bethell para o conto “O tiro”, de Alexander Pushkin. Para dar vida à trama, estavam nos estúdios a atriz Hermione Farthingale e o jovem compositor David Bowie. “Foram necessários cinco minutos no máximo para nos apaixonarmos”, disse Hermione em entrevista ao jornal Daily Record, no ano de 2019.

Naquela altura, Bowie não era conhecido, e o primeiro disco, lançado em 1967, não havia arrebatado público e crítica. De toda forma, o autor recebeu a primeira carta de uma fã norte-americana, à qual escreveu a famosa explicação: “Respondendo às suas perguntas, meu nome verdadeiro é David Jones e você deve imaginar por que eu o mudei”. Semanas depois de The Pistol Shot, o casal já morava junto em South Kensignton, distrito de Londres. Outra mudança repentina alteraria o curso da história do casal. Em 1969, Hermione trocou o Reino Unido pela Escandinávia ao aceitar um convite para estrelar o filme Songs of Norway, de Andrew L. Stone. “Eu inspirei os maiores hits de David Bowie e depois o abandonei e parti seu coração”, revelou ao Daily Record.

Ouvintes atentos agradecem, efusivamente, o término do namoro. No mesmo ano, o cantor lançava o segundo álbum, cujo título, inicialmente, levava o nome do artista. A capa mostrava Bowie em uma obra de Victor Vasarely, pintor húngaro considerado o pai da Op Art. Aos 22 anos, o londrino de Brixton, que havia estudado desenho, valorizava o LP como obra gráfica. A elaboração da partida da ex-namorada está presente na faixa “Letter to Hermione, de breves dois minutos e 37 segundos. Em obra tão importante, a canção não é lembrada como uma das composições centrais do disco. Uma injustiça.

Decerto, características basilares de “Letter to Hermione, como simplicidade e objetividade, não provocam espanto inicial. A discrição contrasta com a beleza arrebatadora da melodia, construída para ser um folk. Violões de aço rompem o silêncio e marcam o jogo do trovador contra a própria angústia. “A mão que escreve esta carta/Percorre o travesseiro vazio”, anuncia Bowie. De imediato, percebemos que não se trata de um poema qualquer. Os dois versos iniciais tematizam a correspondência epistolar e alicerçam as estrofes subsequentes.

A mão que segura a caneta é a mesma que sente a ausência do corpo de Hermione. Se a música não escolhe caminhos imprevisíveis, solos de violão floreiam o canto do artista. Tornam-se evidentes camadas linguísticas conjugadas pelo artista: a melodia, o poema e a carta. Por se tratar de correspondência, a função comunicativa destaca-se e corrobora o aspecto objetivo de um adeus. “Não me importo com mais ninguém/Destruo a minha alma para cessar a dor”, desabafa.

Nas estrofes finais, seu estado de espírito revela-se por completo. Bowie está desesperado. A ansiedade está nos versos: “Dizem que sua vida vai bem/Mas algo me diz que você se esconde/Quando muito está feliz e cansado/Você chora um pouco no escuro/Bem, eu também choro”.

Pouco tempo depois do lançamento, o álbum passou a atender por outro nome: Space Oddity. A canção que abre o disco introduz o conceito da obra e sedimenta características indeléveis à carreira do artista. Bowie revelou, nove dias após à chegada do Apollo 11 à Lua, o seu lado de ficcionista, ao criar o personagem Major Tom, um astronauta que faz uma viagem trágica ao espaço. Tempos depois, o autor confirmaria ter se inspirado em Uma odisseia no espaço (1968), de Stanley Kubrick. Com efeito, o cosmo foi uma obsessão de Bowie. Já em 1971, no álbum Hunky Dory, perguntava se existia vida em Marte. As recentes interpretações de “Life on Mars?, voz e piano, são as mais belas, pois o tempo só fez bem ao timbre de Bowie. Detalhe: “A garota de cabelo dourado”, na letra, é Hermione.

Outros personagens pavimentaram a estrada do glam rock. Na década de 1970, o rockstar alienígena e andrógino Ziggy Stardust fez de Bowie figura incontornável no gênero musical. Admita: um dia você quis ser Aladdin Sane e ter dois raios pontiagudos lhe cortando a face. Bowie influenciou grandes artistas das décadas seguintes. Um deles, sem dúvida, é Robert Smith, líder da banda inglesa The Cure.

Robert Smith, vocalista da banda The Cure, 1985. Ebet Robert.

Em 1995, os compositores se encontraram em um programa da XFM Radio. Logo nos primeiros minutos, Bowie desconcertou seu admirador ao perguntar: “Você escreve com o público em mente ou escreve para satisfazer uma necessidade própria?”. Smith respondeu: “Em algum momento, eu aceitei que estava escrevendo com outras pessoas em mente”.

O comentário ilumina o percurso da discografia do Cure. A banda se formou em 1978, na cidade de Crawley, e teve diversos integrantes. Smith se manteve como o cérebro da trupe ao longo do tempo. Adotado até hoje, o visual gótico do cantor canaliza o glam rock de Bowie para o projeto sombrio da banda. Desde o primeiro single do grupo, a ligação entre música e literatura se faz presente. “Killing an arab é inspirada no clássico O estrangeiro, de Albert Camus.

Pouco a pouco, a banda tornou-se um ícone do pós-punk, mas o som inacessível dos primeiros discos e os poemas aterrorizantes não a qualificavam como fenômeno de massas. “Se todo mundo morrer, ninguém vai se importar”, diz o verso inicial de “One hundred years, primeira faixa de Pornography (1982). Na época, pessoas muito alegres, sempre elas!, ficaram bastante assustadas com a informação dada por Smith.

A banda ganhou as pistas das casas de rock com Disintegration (1989) e Wish (1992). Perspicaz, Smith conseguiu aliar longas paisagens sonoras ao pop. Os álbuns trouxeram um festival de hits, sendo Disintegration considerado a obra-prima do grupo.

É mais fácil apontar a superioridade de um disco com “Plainsong, “Pictures of you” e “Lovesong. A obra seguinte, no entanto, impressiona pelo acabamento de canções, como “From the edge of the deep green sea. “Onda após onda/Tudo é pra ela/E então assistimos ao nascer do sol/Da margem do profundo oceano esverdeado/ (…) E ela escuta como se sua cabeça estivesse em chamas.” Belo.

Na mesma safra, ainda somos agraciados com “A letter to Elise, música obrigatória nos shows da banda. Inspirado pelo livro Cartas a Felice, de Franz Kafka, e por “Letter to Hermione, do ídolo Bowie, a composição traz uma marca registrada de Smith: inserir poemas melancólicos em melodias alegres para inaugurar uma atmosfera nostálgica. “A letter to Elise é conduzida pelo inconfundível motivo inicial apresentado pelo teclado. “Oh, Elise, não importa o que você faça/Eu sei que nunca estarei realmente dentro de você/Para fazer seus olhos pegarem fogo como devem”, diz a voz abafada de Smith. Lord Byron ficaria orgulhoso.

Em 1997, Smith realizou o sonho de cantar ao lado de Bowie, em um show comemorativo pelos 50 anos do camaleão do rock. Já não há mais chances de perguntar a Bowie por que “Letter to Hermione é tão breve. Ele morreu em janeiro de 2016, vítima de câncer. Hoje, Hermione vive em Bristol e trabalha com yoga e pilates. No passado, o Cure entrou para o Hall da Fama do Rock and Roll. Após uma repórter com voz esganiçada perguntar se Smith estava tão entusiasmado quanto ela, Smith disse: “Não”. Aos 61 anos, o líder garantiu que a banda lançará, ainda em 2020, o primeiro dos três álbuns finais do grupo, batizado com nome sugestivo: Live from the moon.

Assista ao vídeo de “Letter to Hermione”

A mão que escreveu esta carta
Percorre o travesseiro limpo
Então, descanse sua cabeça e leia um sonho precioso.
Não me importo com ninguém além de você
Choro para minha alma cessar a dor
Penso se talvez você sinta o mesmo
O que podemos fazer?
Não estou muito certo sobre o que devemos fazer
Por isso tenho escrito apenas para você

Dizem que sua vida está indo muito bem
Dizem que você está animada, como uma nova garota
Mas algo me diz que você se esconde
Quando todo mundo está entusiasmado e cansado
Você chora um pouco no escuro
Bem, também o faço
Não estou muito certo sobre o que você deve dizer
Mas vejo que isso não é certo

Ele lhe faz sorrir
Ele lhe apresenta com estilo
Ele lhe trata bem
E lhe faz realmente bem
E quando ele está forte
Está forte por você
E quando o beija
Isso é algo novo
Mas você alguma vez chamou meu nome
Apenas por erro?
Não estou muito certo sobre o que devo fazer
Por isso, escreverei apenas um pouco de amor para você

Assista ao vídeo de “Letter to Elise”

Oh, Elise, não importa o que você diga
Eu apenas não consigo estar aqui o dia todo
Como continuar agindo da mesma
Forma que agimos
Todo jeito de sorrir
Esqueça

E finja que nós nunca precisamos
De nada mais do que isto
De nada mais do que isto

Oh, Elise, não importa o que você faça
Eu sei que eu nunca estarei realmente dentro de você
Para fazer seus olhos pegarem fogo
Do jeito que eles deveriam
Do jeito que o azul poderia me puxar para dentro
Se eles apenas conseguissem
Se eles apenas conseguissem
Pelo menos eu perderia essa sensação de sentir algo mais
Que se esconde
De mim e de você
Há mundos que se separam
Com olhares dolorosos e corações partidos
E todas as preces que suas mãos conseguem fazer
Oh, eu apenas pego o tanto que você consegue jogar
E depois eu jogo tudo fora
Oh, eu jogo tudo fora
Como jogando rostos para o céu
Como jogando os braços em volta
Ontem

Eu parei e te encarei
Olhos abertos na sua frente
E o rosto que eu vi me retribuiu o olhar
Do jeito que eu queria
Mas eu não consigo segurar minhas lágrimas
Do jeito que você faz

Elise, acredite, eu nunca quis isto
Eu pensei que desta vez eu cumpriria todas as minhas promessas
Eu pensava que você era a garota que eu sempre sonhei
Mas eu deixei este sonho partir
E as promessas se quebraram
E o faz-de-conta acabou

Então, Elise
Não importa o que você diga
Eu apenas não consigo estar aqui o dia todo
Como continuar agindo da mesma
Forma que agimos
Todo jeito de sorrir
Esqueça
E finja que não precisamos
De nada mais do que isto
De nada mais do que isto

E todas as vezes que eu tento levantar isso
Como areia movediça
Tão rápido quanto eu pego
Isso cai através de minhas mãos trêmulas
Mas não há mais nada que eu possa realmente fazer
Não há mais nada que eu realmente consiga fazer
Não há mais nada que eu realmente consiga fazer realmente

Para ouvir essas e outras Cartas na Música, acesse a “playlist” da Rádio Batuta: https://radiobatuta.com.br/selecao/cartas-na-musica/