Reconhecida como uma das mais importantes vozes da poesia anglófona de todos os tempos, Emily Dickinson (1830–1886) morreu no anonimato. Apenas dez dos mais de 1800 poemas legados pela autora foram publicados em vida, todos sem consentimento. Pode-se supor  que a publicidade e a consagração póstumas dos seus textos devem-se, antes de mais nada, ao trabalho arquivístico e editorial.

O primeiro passo para compreender a relação de Dickinson com a própria obra passa, necessariamente, pela imersão no seu epistolário. Quase tudo o que se sabe sobre a trajetória e o pensamento da autora tem como fonte as correspondências que ela manteve com familiares, amigos e intelectuais do seu tempo. Foi a partir das suas cartas, por exemplo, às quais não raro anexou poemas, que seus biógrafos puderam datar vários textos e delinear uma cronologia da obra. Com o auxílio delas, é possível afirmar que, em 1858, Dickinson passou a copiar seus poemas em folhas que dobrava e costurava, os chamados fascículos, em um esforço que pode ser entendido como autoeditorial ou autoarquivístico.  Entre 1862 e 1865, anos da guerra civil americana, Dickinson escreveu mais ou menos 850 poemas, quase a metade de toda a sua produção; em 1864, já havia organizado 40 fascículos com mais de 800 poemas; em 1865, deixou de produzir fascículos, mas continuou a copiar as versões definitivas dos textos em folhas soltas; a partir de 1875, parou de copiar seus poemas e passou a deixar manuscritos inacabados, geralmente rasurados e com formulações alternativas à margem da página.

Para além da função desempenhada pelas cartas na constituição e no estudo da cronologia da obra de Dickinson, elas também permitiram aos pesquisadores borrar a primeira imagem que se criou da poeta — a da mulher solitária que, em seu retiro, cumpria tarefas domésticas e escrevia por inspiração. Como é possível constatar, o “mito de Amherst” foi uma pessoa bastante sociável e participativa nos eventos da cidade até os trinta anos de idade. Mas mesmo a partir daí, quando se tornou reclusa, não cortaria os laços com o mundo exterior, mas construiu um autorrefúgio onde pôde escrever durante quase trinta anos gozando de uma liberdade rara às mulheres, geralmente incumbidas de tarefas domésticas e matrimoniais das quais ela se via livre por ser solteira e viver na casa dos pais, onde empregados cumpriam a maioria das tarefas. Em seu refúgio, Dickinson alimentou uma intensa rede de contatos através das correspondências, tendo trocado informações e ideias com amigos e intelectuais de diferentes partes do país. A sua experiência de reclusão, vista em perspectiva por uma sociedade que precisou atravessar dois anos de isolamento social, mas se manteve conectada e operante, já não parece tão estranha.

As diferentes tendências críticas que orientam os trabalhos dos pesquisadores e arquivistas da obra de Dickinson têm provocado mudanças em todo o sistema de circulação, recepção e interpretação dela. Desde 1960, por exemplo, as cartas passaram a assumir o protagonismo na defesa da autora como uma visionária poeta feminista, antipatriarcal e queer. As correspondências com amigas, principalmente as da juventude, são imbuídas de um afeto que, por vezes, soa insinuante e até erotizante. O avesso da moeda são as cartas com destinatários masculinos. Nessa parcela da sua correspondência, Dickinson manifesta-se com distanciamento e respeito, demonstrando evidente desconforto. Sabe-se que o seu pai foi uma figura pública importante e que ele defendeu, em grandes jornais, o papel doméstico da mulher, opondo-se à hipótese de que se dedicassem seriamente a assuntos políticos e literários. É possível que esse antagonismo caseiro esteja na raiz da sua dificuldade de construir laços afetivos com homens.

As cartas de Dickinson também têm sido perquiridas por oferecerem indícios do que pode ter levado a autora a optar pela não publicação da sua obra. Se poemas como “Publicação – é o Leilão / Da Mente Humana” (v. 1, p. 735)[1] e “A fama é uma comida movediça / […] / O homem come dela e morre” (v. 1, p. 11) relatam a aversão da autora à publicação e à hipótese da fama literária, outros, como “Me ata – eu canto mesmo assim –” (v. 2, p. 123) e “Tomei o poder nas mãos – / E fui enfrentar o Mundo –” (v. 1, p. 589) parecem expressar uma subjetividade oprimida por um sistema desfavorável, a qual se rebela e escreve na contracorrente do que se esperava de uma escrita “feminina”. Em seus poemas, Dickinson questiona deus e o mundo, opera uma vasta gama de ritmos e sonoridades dissonantes, constrói um estilo tão inclassificável e imprevisto à sua época que, até hoje, a vaga alcunha que lhe empregam para posicioná-la na historiografia literária é a de “pré-moderna”, tudo isso em desconformidade com o canto de amenidades e o conto de histórias melosas que se esperavam de uma mulher na Massachusetts oitocentista. Para o leitor desavisado ou despreparado, suas experimentações estéticas e suas irregularidades eram sinais de imperícia — afinal, como esperar de uma mulher a consciência crítica e o conhecimento da tradição necessários para operar desvios intencionais capazes de renovar todo um sistema poético, como no final das contas foi o que ela fez?

Entre 1858 e 1865, ED não poupou esforços em busca de respaldo e publicação. Enviou cartas e poemas a Thomas Wentworth Higginson (intelectual respeitado e importante abolicionista), Samuel Bowles (jornalista e editor do grande jornal Springfield Republican), Thomas Niles (editor da Roberts Brothers Press) e outras personalidades com influência no mercado editorial. Dessas, a  correspondência mais conhecida é a de Higginson, que na época era uma espécie de mentor da nova geração de escritores. Dickinson enviou-lhe um grupo de poemas em uma carta iniciada com a seguinte frase: “Are you too deeply occupied to say if my verse is alive?” (C. 260)[2]. Higginson não elogiou os poemas, julgou sua poesia estranha e tecnicamente defeituosa, ao que Dickinson reagiu com ironia: “You think my gait ‘spasmodic’ – I am in danger – Sir – You think me ‘uncontrolled’ – I have no Tribunal. Would you have time to be the ‘friend’ you should think I need?” (C. 265). A poeta passou a assinar as cartas como “sua aluna”, mas não incorporou nenhuma das dicas do “mestre”. Com a dificuldade que encontrou, e diante da incompreensão enfrentada pela sua poesia, ela abriu mão da ideia de ser publicada em livro e criou um circuito alternativo de publicação — o das cartas. Menos de dez poemas foram impressos, mas mais de 500 circularam privadamente entre amigos e críticos.

Por mais irônico que pareça, coube justamente a Higginson, em companhia de Mabel Loomis Todd, a tarefa de preparar a primeira publicação dos poemas de Emily Dickinson. A edição inaugural, de 1890, quatro anos depois da morte da poeta, foi seguida por uma série de reedições que respondiam ao sucesso de vendas e ao prestígio que o livro do “mito de Amherst” prontamente alcançou. Já os primeiros editores sentiram a necessidade — e/ou vislumbraram a oportunidade de lucrar com a demanda — de publicar as cartas para dar a ver a poeta por trás do mito e dos versos, sendo que todos enalteceram as convergências e complementaridades entre sua poética e sua epistolografia.

Higginson e Todd, diante do imenso volume de manuscritos encontrados, tomaram opções questionáveis: ignoraram a ordem dos fascículos, “corrigiram” versos, intitularam poemas sem título e os organizaram por temas, deixando a maior parte de fora das primeiras antologias. O que fizeram, resumidamente, foi domesticar a poesia de Dickinson. Já na segunda edição, o próprio Higginson assumiu a necessidade de fazer menos intervenções no estilo da autora, sob a alegação de que os ouvidos do público se encontravam mais preparados. Essa tem sido uma tendência crescente: após décadas de publicações descaracterizadas da poesia da autora, desde 1955, ano em que Johnson publicou a primeira edição crítica da sua poesia completa, com os 1775 poemas conhecidos até então, o que se tem observado é um processo de “desedição”, de redução da interferência dos editores na construção da obra, de modo a respeitar as escolhas estéticas e autoeditoriais de Dickinson.

MercadoEditorial.org - Poesia completa - Editora da Unicamp
Capa da edição de Poesia Completa, publicada em 2020

A pioneira edição de Adalberto Müller, publicada em dois volumes pelas editoras da UNICAMP e da UnB, para além do mérito de ser a primeira tradução da Poesia Completa da autora para a língua portuguesa, distingue-se por seguir as melhores e mais corretas práticas editoriais em respeito ao estado da obra de Dickinson tal como ela a deixou. A separação em dois volumes ainda dá a ver a diferença entre a autora dos fascículos (volume 1), a que ainda não havia abandonado a ideia da publicação, e a autora das folhas e dos poemas soltos (volume 2), a qual, liberada das amarras autoimpostas pelo desejo de aceitação, testa novas fronteiras.

Até aqui, foi destacado o papel das cartas de Dickinson na constituição da sua obra e da sua biografia, mas é necessário destacar também o valor da sua epistolografia em si. Não bastasse ter sido uma das maiores poetas da língua, Dickinson também foi uma epistológrafa exemplar. Sua arte de escrever cartas é atravessada pela propensão desviante em relação às formas e aos gêneros literários: se, em poesia, ela tensionou, modernizou e enriqueceu alguns dos aspectos mais básicos do sistema literário anglófono, notadamente o sistema rímico e rítmico, na epistolografia ela fundou um reino todo seu. Alguns autores chegam a defender, de modo consistente, que a estética dos poemas-carta consiste exclusivamente nos manuscritos, já que haveria uma exploração espacial do suporte (quando ela escreve na aba de envelopes, por exemplo) que seria um método experimental perdido nas transcrições. Ainda que não se concorde com essa visão, a qual eleva os manuscritos a um grau de importância máximo — já que, sob esse ponto de vista, a obra só residiria neles —, fato é que a dificuldade de reconhecer os limites entre a prosa da carta e a música da poesia segue fomentando o surgimento de novos questionamentos sobre os critérios de distinção entre os dois gêneros literários e a eficácia desses critérios para pensar e publicar ED.

“A carta”, por fim, nas palavras de Dickinson, “é o júbilo na Terra – / O que aos Deuses se nega” (v. 2, p. 669). A despeito do seu uso mais ou menos artístico, é certo que elas a salvaram, como afirma em uma missiva a Higginson. Essa salvação pode ter sido da solidão, do completo anonimato ou do senso de finitude — “A Letter always feels to me like immortality because it is the mind alone without corporeal friend” (C. 330). . Tudo o que se lê ou sabe da autora deriva de um trabalho editorial e arquivístico mais que centenário, de modo que não é equívoco afirmar que Emily Dickinson é arquivo. E mais: seu epistolário é de fundamental importância para o estudo e a constituição da sua obra.


[1] As cartas de Emily Dickinson serão referidas em inglês com um C acompanhado pela numeração estabelecida em DICKINSON, 1963, edição de Thomas H. Johnson e Theodora Ward. Vale mencionar que a Harvard Press publicará, em 2022, uma nova edição das Letters sob a edição de Cristanne Miller e Domhnall Mitchell.


[2] Os poemas serão referidos em português pelo volume (v. 1, de 2020; v. 2, de 2021) e a página onde se encontram na Poesia Completa de Emily Dickinson, tradução e organização de Adalberto Müller.