por Danilo Bresciani

O sentimento do fim e das coisas passadas é nosso companheiro de viagem – como escreveu Drummond, “viver é saudade prévia”. Não sei se você guardará boas ou más lembranças deste ano que agora chega ao seu fim. Mas ficamos combinados assim: você, eventual leitor ou leitora, nos acompanhe nesta modesta retrospectiva e vá pensando no tempo que passou em um segundo ou que demorou uma eternidade e nos eventos de que quer se esquecer ou lembrar para sempre. Esta mirada para trás também se presta a mostrar que às vezes é impossível não
encarar certas coisas.

Num ano em que a COVID-19 continuou assolando o mundo, principalmente o Brasil, perdemos, em novembro, alguém que nos dava orgulho de dizer “sou brasileiro”: Nelson Freire. Não é por acaso, portanto, que a carta mais lida do ano de 2021 tenha sido a do pai de Nelson, José Freire da Silva, escrita em 1950. Em “Afetuosamente, o papai”, José registra sua decisão de sair de uma cidade mineira pequena, de poucos habitantes, mas cujo nome pode nos acalentar neste fim de
ano: Boa Esperança.

O professor de piano de Nelson deu um conselho que deixou a família em um “dilema de difícil solução”: permanecer na cidadezinha mineira e seguir a vida ou arriscar e ir para a então capital federal, o Rio de Janeiro, onde seu filho poderia continuar a estudar piano.

Sabemos qual foi a decisão. A família Freire mudou-se para o Rio de Janeiro para que o menino de seis anos continuasse a estudar música. No melhor estilo de rememoração biográfica, a carta apresenta um Nelson com pouca saúde, alimentado de rapadura diluída e fascinado, desde sempre, por aquilo que o levaria à glória: o piano.

Seguindo na procissão das mais lidas, voltaremos alguns séculos. Um homem com barba branca, de fala mansa, olhos claros, conciliador, poliglota e amante das artes, da tecnologia nascente e das ciências em geral: um cidadão do mundo. Esse é o retrato do imperador dom Pedro II, que se tornou personagem de Nos tempos do Imperador, novela da TV Globo que parece ter alavancado a busca pela monarquia no nosso site, sobretudo em relação à condessa de Barral. É ela, Luísa, que ocupa o segundo e o terceiro lugar das missivas mais procuradas (fosse um conto de fadas dinamarquês, diríamos: “o imperador está nu!”).

A carta “O desabafo do Imperador”, de 1877, é digna de um personagem machadiano: no melhor estilo português oitocentista, Pedro II, em viagem à Europa, onde posteriormente encontraria a condessa, abre o coração dizendo sobre as saudades que “têm sido muitíssimas”. Já “Uma palavrinha basta” é de 1876, ou seja, um ano antes da anterior. Pedro confessa que Luísa, a condessa, é uma de suas maiores afeições, manda lembrança das Cataratas do Niágara e pede para Luísa não lhe cansar a vista. O Imperador lança, ainda, uma fake news: diz que “uma palavrinha basta”, mas desanda a falar sobre presentinhos, mortes de conhecidos comuns, volta de novo ao Niágara, o filho do amigo e outras coisas mais. Haja assunto!

Ocupando o quarto e o quinto lugar das mais lidas, mas não menos importante, está a centenária Clarice Lispector! Em “Sua mãe, Clarice”, de 1975, a autora se dirige ao filho Pedro,
comemorando a compra de novos materiais para pintar – prazer compartilhado com ele. A carta, aparentemente simples, é carregada de emoção e termina com a frase: “pintar é uma libertação”. De certa forma, essa frase revela a face da Clarice pintora, que pode ser muito bem observada na exposição Constelação Clarice aberta em outubro deste ano no IMS Paulista.

Já em “Carta ao Ministro da Educação” Clarice aparece numa versão indignada com o rumo da educação naquele ano, 1968: “queríamos saber se as verbas destinadas para a educação são distribuídas pelo senhor. Se não, esta carta deveria se dirigir ao presidente da República. […] Que estas páginas simbolizem uma passeata de protesto de rapazes e moças”. A seu brado na carta de fevereiro se juntaria, logo depois, em março, a clamor dos estudantes. É que o aluno Edson Luís seria assassinado por um policial à queima-roupa, em um restaurante universitário, o Calabouço. No fim desse ano, o governo ainda baixaria o AI-5 e decretaria o fechamento político total do país. Isso foi há quase 60 anos, mas sua atualidade se justifica pelo ambiente de violência e corte de verbas da educação, saúde, ciência e tecnologia, levantando os entulhos que vêm tentando minar a democracia.

As cartas, apesar de obviamente antigas, carregam uma atualidade quase sinistra. De clarividência, mesmo. Pois como verá o eventual leitor ou leitora, o tempo passou e não passou. Essas cinco cartas serem as mais lidas do Correio IMS no ano de 2021 serve para recordar quem se foi, como o nosso grande pianista, Nelson Freire, mas também para noveleiros conhecerem melhor a intimidade do imperador e da amada condessa de Barral; ou para celebrar o centenário, ainda que retardado em um ano, de Clarice Lispector.

Mas esse movimento de ler e reler cartas serve para que, mesmo num dilema quase impossível, não percamos a Boa Esperança nem a capacidade de nos indignarmos. Que venha 2022 com mudanças de CEPs, novos destinatários e remetentes! Sigamos.