“Alguns dos tesouros mais valiosos e únicos da natureza estão em exibição na galeria Vault. Veja a maior coleção do mundo de diamantes coloridos (eles também brilham no escuro) e maravilhe-se com meteoritos raros vindos de fora deste mundo.” O Dragão: um raro espécime de ouro cristalizado, considerado um dos mais finos tesouros minerais do mundo; a Pirâmide da Esperança Aurora: uma coleção incomparável de 296 diamantes coloridos; uma ametista amaldiçoada com uma história sombria; a pepita de ouro Latrobe: um dos maiores cristais de ouro já encontrados e a Esmeralda de Devonshire: “uma das maiores e mais ricamente coloridas esmeraldas já encontradas.”. É assim que o Natural History Museum de Londres anuncia o seu cofre de preciosidades — foi nele que esbarrei com essa famosa Esmeralda, que se tornou meu objeto de pesquisa (ou a obsessão de uma artista-pesquisadora). 

Protegidos por alarmes, lasers, travas, aço e vidros especiais, estão gemas e meteoritos escavados da Austrália, Colorado (EUA), Índia, Colômbia, entre outros locais não identificados. São espécimes nomeados: Devonshire, Dragão, Latrobe, Aurora e Ametista Amaldiçoada. Quando uma pedra, uma gema ou um mineral é nomeado, acrescenta-se ao seu valor científico, geológico ou comercial, um valor cultural – ou seja, sua existência é capaz de narrar tramas políticas, sociais e históricas. 

Uma técnica microscópica é usada para conhecer a procedência de uma gema. Retira-se um mini-micro fragmento para análises e nessa espécie de pó de cristal está a memória da terra: sua origem, o instante de sua formação e sua idade são revelados como num código genético mineral. Por outro viés, documentos aduaneiros, livros de tombo, registros de compras e vendas, cartas, jornais e folhetins guardam os rastros de sua vida entre humanos ou de seu valor cultural.  Se encontrar uma pedra, qualquer que seja, posso ou não, registrar seu local de origem, suas dimensões, por quanto foi vendida, a quem pertenceu. Se decido não registrar, a narrativa de sua existência se dará por sua composição química e geológica; abre-se uma fissura em sua memória cultural. 

Arquivos imperiais guardam uma seleção de objetos e registros que narram e reafirmam uma estrutura de poder colonial por excelência. Uma pedra preciosa guarda para além de seus registros oficiais e geoquímicos, múltiplas facetas de vidas violentadas, escravizadas, rotas de sangue e cosmologias dizimadas. Essas existências, muitas vezes excluídas das instituições de memória, permanecem nas histórias de povos marcados pela mineração. 

Olhando para o rol de pedras destacadas no museu inglês, exaltadas por seus aspectos visuais e características raras, saltou aos meus olhos de turista a legenda da Esmeralda: 

“Berilo, variedade esmeralda. 1.384 quilates

Muzo, Colômbia 

Chatsworth Settlement Trustees, Coleção do Duque de Devonshire, Chatsworth 

Este cristal é uma das maiores esmeraldas conhecidas e é notável por sua rica cor. O sexto duque de Devonshire adquiriu-a do imperador Dom Pedro I do Brasil, provavelmente em 1831. Sua forma de prisma hexagonal, terminando em face plana, é típica das esmeraldas. Uma das extremidades é áspera, onde foi retirada da rocha em que cresceu. 

Tem muitos defeitos, provavelmente por isso escapou de ser lapidado para uso em joalheria. No entanto, sua cor vibrante e tamanho grande fizeram com que ela fosse exibida com destaque na famosa Grande Exposição de Londres, em 1851”. 

Fixei-me em “Dom Pedro I do Brasil”.  O Vault guarda uma preciosidade da história do Brasil circunscrita em um sistema de segurança máxima.  O Duque “adquiriu” como? Qual é a origem? Como foi parar da Colômbia para a mão de Dom Pedro I e de Dom Pedro para o Duque?  Quais tramas de história estão nessa Esmeralda? 

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Lancei essas perguntas para a pedra como um feixe de luz branca atravessando o prisma de Newton, de onde se abriram matizes de pensamento a perseguir. Caminhei pelo arquivo de William Cavendish, o XI Duque de Devonshire, a quem Dom Pedro transferiu a posse; folheei páginas dos jornais me detendo nos registros de entradas e saídas; fiz visitas virtuais à Mina de Muzo, na Colômbia, local indicado como o de procedência da pedra. Posicionei no tabuleiro os personagens, peças-chave dessa trama: o Duque e Dom Pedro como protagonistas, e duas outras figuras que se tornaram incontornáveis: José Bonifácio e a Imperatriz Leopoldina. 

Estacionei em Leopoldina e iniciei um inventário de menções à mineralogia e às pedras preciosas em seus diários e cartas. Aproximar a Imperatriz da Esmeralda trouxe à tona uma mulher disposta a abdicar do destino de princesa, fadada ao casamento político, para se dedicar aos estudos científicos de mineralogia. 

Antes de seu casamento e vinda para o Brasil, Leopoldina anota em seu diário uma fala de seu professor de mineralogia, Rochus Schuch (1788-1844): “Leopoldina, se não encontrarem nenhum marido para Vossa Alteza, então a senhora vai simplesmente estudar mineralogia”; sua resposta: “Isso seria maravilhoso. Eu poderia passar o dia todo trabalhando com pedras preciosas, catalogando-as e pesquisando para desvendar os segredos guardados nos cristais – nas ametistas e nas esmeraldas…”.  

Leopoldina acrescenta em outra página de seu diário: “se Metternich não encontrar um marido para mim, quero ter permissão para estudar mineralogia até saber tanto quanto o meu inteligente professor Schuch. Sei que até hoje nenhuma mulher jamais estudou mineralogia, pois as mulheres não podem entrar na universidade de modo algum – mas isso não será impedimento para mim! O que vai acontecer é que eu simplesmente serei a primeira a fazê-lo.” 

 Seu casamento foi anunciado: 

“Gazeta do Rio de Janeiro, 1817:

Vienna 30 de Novembro. 

O contrato de cazamento da Archiduqueza Leopoldina foi assignado antehontem, 28 de Novembro. Decidio-se que S. A. I. não partirá daqui senão no proximo mez de Abril (…)”. 

E imediatamente sua atividade científica e a continuidade do seu interesse pela mineralogia foram garantidas: 

ALLEMANHA: S. A. R. a Archiduqueza Leopoldina mandou chamar varios naturalistas, que residirão algum tempo no Brazil, e conferenciou largamente com elles sobre o que diz respeito àquelle paiz.” 

Uma vez estabelecida na Quinta da Boa Vista, criou uma coleção e catalogou minerais encontrados em passeios, viagens e expedições científicas, atividades estas que entrelaçava às atribuições de seu cargo de Imperatriz e à maternidade. É recorrente a aparição de menções a pedras preciosas e mineralogia em sua correspondência e diário: “Aproveito esta oportunidade para lhe enviar uma caixa com minerais raros adquiridos durante as minhas diferentes viagens a Minas Gerais (…)”; “enviarei minhas pesquisas ao Sr. Lucas que, por seu excelente livro, permitiu que eu aprofundasse meu conhecimento da bela e rica ciência da mineralogia”; “se virdes o digno Cary, rogo-vos encomendar, em meu nome, uma balança mineralógica para saber o peso das pedras preciosas”; “espero com bastante impaciência que o Sr. Gordon arranje agora meu gabinete de mineralogia”; “Tereis a bondade, em Londres, de me obter os gêneros e espécies que faltam no catálogo de conchas que vos envio, comunicando-me os objetos de história natural que quiserem do Brasil, para fazer a permuta”; “Estou enviando um carte de amostras de minerais para papai. São pedras que venho coletando em minhas viagem para o interior”. 

Outra figura orbita Leopoldina nessa história, com brilho próprio: Maria Graham, correspondente de muitas dessas solicitações e envios de Leopoldina – duas mulheres elementares nas tramas políticas e principalmente no que diz respeito às relações exteriores, em especial com Londres, Viena e Alemanha. Graham frequentou a corte como tutora da infanta Maria da Glória e foi companheira na troca intelectual de Leopoldina. Depois de sua saída da corte, manteve contato com a Imperatriz por cartas, entre as quais uma, em especial, conjuga as facetas da Leopoldina-mineralogista, Leopoldina-mãe, Leopoldina-política, Leopoldina-esposa, Leopoldina-confidente, além da demonstração de afeto e do laço de amizade entre as duas. 

Leopoldina para Graham, de 2 de fevereiro de 1826: 

A carta começa com Leopoldina lamentando a morte de William Cary, o fabricante que manufaturava balanças mineralógicas, peça que insistia em receber para medir com mais precisão o valor das pedras preciosas. Em outro momento da carta, ela comenta com desgosto a notícia de uma peça de teatro, exibida em Paris, que satirizava o Brasil. Pelo desagrado expresso, deve ser uma peça fundamentada em estereótipos degenerativos sobre o “novo mundo”. Nessa mesma carta ela acrescenta um P.S.: “Deveis ter recebido minha carta, em que vos dou a notícia feliz do nascimento de um filho que respondeu a todos meus anseios”, D. Pedro de Alcântara, futuramente Dom Pedro II. 

Quem leu até aqui já deve ter percebido as divagações e digressões desse texto. Leopoldina, Devonshire, The Vault, gemas, Graham, D. Pedro I, II… É possível que a Esmeralda com a qual iniciei minha peregrinação por arquivos da mineração tenha passado por Leopoldina? Provável. Há registros? Ainda não foram encontrados e a esperança é pouca, uma vez que muitos dos seus documentos foram perdidos no incêndio do Museu Histórico Nacional, em 2018. 

À margem dos registros oficiais das minas, dos estudos mineralógicos e das expedições dos naturalistas, lanço uma pergunta: o que surge quando lemos pedras e a terra como documentos e palimpsestos? Perseguindo as pedras que Leopoldina deixou em seu caminho, numa aventura artístico-acadêmica, rascunho e traço narrativas como quem liga os pontos em um quebra-cabeça multiforme, atenta às linhas que aparecem, às formas e vidas que surgem e se inscrevem nas tramas do Brasil. Quantas vozes, vidas, histórias e mundos cabem em uma Esmeralda? Veremos, enquanto houver terra à vista. 

PS: Entre as referências que sustentam esta pesquisa estão periódicos acessados na Hemeroteca Digital Brasileira e os seguintes livros: D. Leopoldina: Cartas de uma imperatriz (Estação Liberdade), com pesquisa e seleção de Bettina Kann e Patricia Souza Lima; Correspondência entre Maria Graham e a imperatriz Dona Leopoldina (Garnier), traduzido por Américo Jacobina Lacombe; e Um diário imperial: Leopoldina, princesa da Áustria, Imperatriz do Brasil, de 1º de dezembro de 1815 a 5 de novembro de 1817 (Reler), organizado por Gloria Kaiser e traduzido por Anna Olga de Barros Barreto; Também me deparei com uma dissertação de mestrado que, para quem se interessa pela faceta “Leopoldina-cientista”, recomendo a leitura: Imperatriz Leopoldina: uma história da mulher e das ciências naturais no Brasil do século XIX (1817–1826), de Gabriela Evangelista, defendida na UFRJ.