Janeiro de 1866. Com o fim da Guerra Civil Americana, muitos soldados haviam retornado a seus lares quando Robert Nelson Jabo, da 8ª infantaria de New Hampshire, internado no Hospital Harewood, em Washington, decidiu escrever para sua mulher, Adeline. Mas ele era analfabeto e estava doente. Então, um senhor gentil, de barba grande e olhar doce, que visitava regularmente o hospital, se ofereceu para escrever a carta.
“Minha querida esposa”, começou, “você deve me desculpar por não ter escrito… não tenho estado muito bem”. Em seguida, explicava que quem escrevia era outra pessoa, “que está agora sentado ao meu lado” e que somente ao final da carta se identificava: “Escrito por Walt Whitman, um amigo”.
A descoberta da terceira “carta de soldado”, soldier letter, em inglês, escrita por Whitman foi feita em março de 2016 por Catherine Wilson, voluntária do projeto de digitalização para internet dos arquivos de pensão das viúvas da Guerra Civil. A paixão e curiosidade da arquivista pelos papéis que deveria apenas verificar se haviam sido devidamente arquivados e se precisavam ou não de restauração, levaram-na a atentar para o verso do documento, em que se lê o nome do poeta norte-americano.
Imediatamente, David Ferriero, diretor do Arquivo Nacional dos EUA, digitalizou a carta e enviou-a a Kenneth Price, estudioso da obra de Whitman e co-diretor do arquivo do escritor na Universidade de Nebraska. O especialista confirmou a autenticidade ao notar o modo peculiar como Whitman escrevia as letras x, d e l, e como ele geralmente usava o sinal de + ao invés da conjunção “e”.
No dia 19 de dezembro de 1866, 11 meses depois da correspondência ter sido escrita, Jabo morreu de tuberculose no Hospital Providence, em Washington, para onde fora transferido. Como ele havia sido afastado do serviço um ano antes por seu estado de saúde, o governo inicialmente rejeitou o requerimento de pensão aberto pela viúva em 1867, adiando a entrega desse dinheiro por sete anos. “Eu espero que seja a vontade de Deus que ainda nos encontraremos novamente”, despedia-se o marido na carta.
A atuação de Whitman junto a soldados não se restringiu à ajuda que deu a Jabo. O poeta viajou ao front da guerra em 1862 para cuidar do irmão mais novo, George, que se ferira na Batalha de Fredericksburg, na Virginia. Ali, entre os feridos, teve a dimensão do conflito e começou a visitar hospitais para prestar assistência. De acordo com Price, Whitman “repetidamente menciona escrever cartas para os soldados” em Memoranda During the War (1875-76), diário no qual registrou os horrores da guerra. Infelizmente, poucos desses documentos sobreviveram ou ainda não foram identificados em locais como o Arquivo Nacional dos EUA. Muito antes, porém, de publicar essa obra, o poeta descreveu suas visitas a soldados feridos num artigo de 1864 para o The New York Times:
Muitos soldados feridos e doentes não têm escrito aos pais, irmãos, irmãs e até esposas, por uma razão ou outra, por muito, muito tempo. Alguns são escritores medíocres, outros não conseguem papel e envelopes, muitos têm aversão à escrita porque temem preocupar as pessoas em casa – os fatos sobre eles são tão tristes para contar. Eu sempre encorajo os homens a escrever, e prontamente escrevo para eles.
Além das cartas, “Whitman distribuía frutas, doces e pequenas quantias de dinheiro”, afirma Jackie Budell, supervisora do projeto de digitalização no Arquivo Nacional. “Mas eu realmente acho que o investimento de tempo e a emoção que demonstrava aos rapazes era provavelmente o que eles mais procuravam”. E o escritor sabia disso. Em dois momentos distintos, escreveu: “Eu não tinha nada para dar na visita, mas escrevi algumas cartas para as pessoas em casa, mães etc. Também conversei com três ou quatro, que pareciam mais suscetíveis a isso, e precisavam disso”; “Eu caminho diariamente e converso com os homens, para animá-los”.
Segundo Budell e Price, como os hospitais durante a Guerra Civil eram locais perigosos, o trabalho voluntário do escritor pode ser considerado “extraordinário” – é o que considera Budell: “o tempo que gastou visitando os soldados foi corajoso e generoso. Poucos escritores teriam sacrificado uma quantidade de tempo tão grande no auge da carreira literária. Suas visitas aos hospitais foram atos de amor que permanecem francamente inspiradores”. Para ele e Ed Folsom, outro estudioso de Whitman, o número de soldados ajudados pelo poeta está na casa das dezenas de milhares (o próprio escritor estimou que tivesse visitado de oito a cem mil soldados feridos e doentes).
Price aponta ainda para o curioso rascunho de um manuscrito inédito, escrito antes da guerra, no qual o poeta, de certo modo, antevê o futuro ao escrever: “It is you talking/ I am your voice/ It was tied in you/ In me it begins to be loosened/ talk/ I celebrate myself to celebrate you every man and woman alive/ I transpose my spirit.”
Walt Whitman publicara Leaves of grass (Folhas de relva), sua obra mais importante, em 1855. A experiência nos hospitais de Washington cerca de dez anos depois lhe inspirou novo tipo de poesia em que ressoam os efeitos do conflito: o luar iluminando os mortos nos campos de batalha, as igrejas se transformando em hospitais, o encontro com o inimigo morto em um caixão, os pesadelos dos soldados que sobreviveram.
Whitman reuniu esses poemas e alguns que escrevera pouco antes da guerra no livro Drum-Taps, cujo título evoca tanto as batidas dos tambores que acompanham os soldados nas batalhas quanto a marcha funerária que ecoa nos enterros, originalmente tocada em tambores, drums, em inglês.