Gustavo Zeitel
João Cabral de Melo Neto não ficou deslumbrado com as águas do Mediterrâneo. Diplomata de carreira, o poeta pernambucano foi transferido para o Consulado Geral em Marselha, no sul da França, em dezembro de 1958. Três meses antes, empreendeu uma longa viagem pela Andaluzia ao lado do amigo Murilo Mendes. Já naquela época, João Cabral, que trabalhara em Barcelona e Sevilha, não escondia sua predileção pela Espanha. A viagem serviu, enfim, para acentuar as diferenças entre os países, o que só causou mal-estar a João Cabral, entediado com a sua nova rotina. Ignorando o glamour da Riviera Francesa, o poeta fez jus à fama de ranzinza em cartas ao jornalista e escritor mineiro Otto Lara Resende. Sob a guarda do Instituto Moreira Salles, as seis missivas de Marselha se distinguem pela extensão, prova de que o ócio era a principal companhia do remetente. “Agora aqui estou nesta Marselha, ou Merdelha. Talvez não a chamasse assim se não tivesse vindo de Sevilha”, escreveu em carta de 16 de novembro.
Lara Resende, por sua vez, compreendia as andanças de João Cabral pelo mundo. Também havia enveredado pela diplomacia, tendo sido adido cultural em Bruxelas, na Bélgica, e em Lisboa, Portugal. Na mesma carta, o poeta orientou o amigo que estava em Madri, tecendo elogios à capital espanhola e críticas aos colegas da Embaixada, os mais “vazios” e “neutros”. “Em Sevilha trabalhei muito mais em intensidade do que em extensão. E aqui, onde não há absolutamente nada o que fazer, além de suportar Marselha, creio que continuarei escrevendo poesia para me chatear”.
Para João Cabral, o fim dos anos 1950 representou um ponto de virada em sua carreira literária. Em 1955, publicou Duas águas: poemas reunidos, obra que incluiu Morte e vida severina, Uma faca só lâmina e Paisagens com figuras, cujo poema “Pregão turístico do Recife” é dedicado a Lara Resende:
Aqui o mar é uma montanha
regular redonda e azul,
mais alta que os arrecifes
e os mangues rasos ao sul.
Do mar podeis extrair
do mar deste litoral
um fio de luz precisa,
matemática ou metal.
Na cidade propriamente
velhos sobrados esguios
apertam ombros calcários
de cada lado de um rio.
Com os sobrados podeis
aprender lição madura:
um certo equilíbrio leve,
na escrita, da arquitetura.
E neste rio indigente,
sangue-lama que circula
entre cimento e esclerose
com sua marcha quase nula,
e na gente que se estagna
nas mucosas deste rio,
morrendo de apodrecer
vidas inteiras a fio,
podeis aprender que o homem
é sempre a melhor medida.
Mais: que a medida do homem
não é a morte mas a vida.
Se o título Duas águas remete à aliança perseguida por João Cabral entre poesia popular e erudita, é curioso notar a presença do Recife nos poemas de Paisagens com figuras, livro que refletiu o nomadismo do diplomata. O autor buscou unir a sua terra natal aos países em que viveu, adensando diversas paisagens em seu rigor formal, refletido, em “Pregão turístico do Recife”, no uso irrevogável dos quartetos e da rima alternada (ABAB). Nesse sentido, a cesura da lâmina cabralina opera em uma espécie de bricabraque imagético, capaz de ressaltar a plasticidade de cada elemento da paisagem. João Cabral diferenciava o trabalho intensivo do extensivo, do mesmo modo que sabia atribuir o metro adequado a cada objeto. Não por acaso, o mar tem características geométricas – “uma montanha regular redonda e azul” – na arquitetura (ou na escrita) do poema.
A colagem de elementos díspares é constante em Paisagens com figuras, estando explícita no primeiro quarteto de “Volta a Pernambuco”:
Contemplando a maré baixa
nos mangues do Tijipió
lembro a baía de Dublin
que daqui já me lembrou.
O regresso do autor a Pernambuco é tema presente no título, mas a contemplação da paisagem transfigura-se nas diversas cidades por onde o diplomata passou. O uso do verbo “lembrar” no presente e, em seguida, no pretérito perfeito reforça a ideia de transitoriedade do cenário poético. João Cabral, que preferia o epíteto “poeta pernambucano” a “poeta brasileiro”, constitui sua Pernambuco particular, sobrepondo a baía de Dublin ao manguezal nordestino.
Lançado no ano passado, por ocasião do centenário do autor de Educação pela pedra (1966), o livro João Cabral de ponta a ponta reúne os ensaios do professor e crítico literário Antonio Carlos Secchin sobre a obra do poeta andarilho. Em “Outras paisagens”, lemos uma possível explicação para a sobreposição de paisagens de diferentes países:
Apesar do esforço de transparência comunicativa, a linguagem cabralina tanto mais encobre quanto menos deseja ocultar. Convocada para permear invisivelmente o contato do homem com o real, ela se denuncia como máscara ou filtro mediador. (…) Com isso, declarando aderir a algum credo realista, o poeta exorciza no mesmo passo em que aparentemente o adota, quando insinua que a realidade possa ter voz própria, e que caiba ao poeta apenas reproduzir o que de lá provenha. Não obstante a chancela da “objetividade”, a “reprodução” da voz alheia não é menos construída do que qualquer outra representação discursiva. Nesse sentido, para nos valermos do título de antiga obra de Cabral, toda Paisagem é com figuras (…)
Logo, João Cabral transforma a imagem cotidiana em imagem poética, como se o poema fosse um corpo de dupla face. Ao mesmo tempo em que traduz o real, recria a realidade. A objetividade realista, preconizada por Secchin, é, de certo modo, acompanhada por um certo idealismo cabralino, na medida em que cada elemento da paisagem constitui sua própria linguagem.
Marselha, para João Cabral, significou o oposto da vida, a medida do homem. A transitoriedade diplomática suspendeu-se nas longas horas em que pode trabalhar extensivamente seus poemas e escrever aos amigos. Quaderna, livro de 1960, remonta ao período em que o autor viveu no sul da França. Em 5 de fevereiro de 1959, escreveu outra carta a Lara Resende, que aproveitava as férias no Rio de Janeiro, antes de trabalhar em Bruxelas:
Só sei é que a Bélgica foi sempre respeitada, país caríssimo da Europa. Devo apenas dizer que sei ao menos de um colega meu, da Embaixada, que gasta menos de 800 dólares por mês. E vive como diplomata, tanto quanto os outros. Bem, meu caro, espero que você resolva o que melhor convier a você. Creio que para isso tem prestígio suficiente até para arranjar uma cadeira de cultura brasileira na Côte d’Azur (o que seria ótimo!). (…) Mandei, ontem, para Livros de Portugal, os originais de meu livro novo: Quaderna. Mas quando sair já você estará de volta na Europa. Diga ao Paulo Mendes Campos que me mande o livro dele, de poemas. Como dei a ele 2 exemplares de Duas águas, ele não perderá muito na troca… J.
A carta enterra o mito de que João Cabral não era dotado de senso de humor. A personalidade ranzinza proporciona a comicidade do texto, provando que o remetente fazia tudo ao seu modo: poesia e piada. Não são poucas as leituras que assaltam os versos cabralinos, roubando-lhes o lirismo. Assim como o humor do poeta está no mau humor, seu lirismo é oblíquo, particular, necessário à transformação da imagem cotidiana em imagem poética. Lara Resende, de todo modo, leu Quaderna com lentes adequadas, como João Cabral observou em carta de 2 de abril do mesmo ano:
Meu caro Otto,
Muito obrigado pela carta. É bom saber que se pode contar com leitores como você. Sinto que meu livro realmente bateu em você e da maneira como a poesia deve bater nas pessoas: não mentindo filosofias mas atmosferas, texturas, coisas, etc. Você fala do livro mais como uma paisagem do que como um livro (isto é: essa coisa que muita gente pensa que é feita só para transmitir e ensinar ideias, dar lições, etc.), o que para meu conceito de poesia, poeta, poema, é tudo o que um autor pode desejar. O resto, as qualificações, se é nota 5 ou nota dez, se é melhor do que o de fulano ou sicrano, nada disso tem importância realmente. Mais uma vez, obrigado.
Menos enfastiado, com a chegada da primavera em Marselha, mas ainda com tempo livre, João Cabral voltaria a escrever na mesma carta, vinte e quatro dias depois:
Meu caro Otto,
Hoje é 26 de abril. Vejo, assim, que esta carta ficou 24 dias na gaveta sem que eu a terminasse. Peço desculpas pela demora. Não pelo que deixei de dizer porque, pela frase que deixei no meio, vejo que ia entrar na lenga-lenga antimarselhesa habitual. (…) Hoje chegou a autorização do Itamaraty para que eu vá a Madri fazer uma conferência. Preferia que não tivesse vindo. Porque apesar do prazer de [ilegível] Madri, estou agora obrigado a: 1) viajar e de avião; 2) escrever a conferência e 3) gastar um dinheirão (pois o convite é de estudantes e estudantes nunca pagam nada).
Com receio de poeta que se mete em prosa alheia, João Cabral aconselhou o amigo em um de seus projetos literários mais ambiciosos. Tinha medo de como o leitor brasileiro, “o mais preguiçoso do mundo”, receberia o único romance de Otto Lara Resende, O braço direito (1963), que, na voz do zelador Laurindo Flores, conta o dia a dia do Asilo da Misericórdia, irmandade responsável por cuidar de órfãos, viúvas e enfermos da cidade imaginária de Lagedo. João Cabral assim leu a obra em carta de 20 de fevereiro de 1959:
A leitura se faz apaixonadamente a partir da morte do Benfeitor. Esta, no ramerrão da vista do Inspetor, é talvez menos forte do que o choque que o leitor leva. Na verdade, o leitor é surpreendido pela morte e a partir daí lê o livro com duzentos olhos. (…) Isso se vê que você o fez de propósito; mas eu me pergunto se ela não ganharia em ser encurtada. Não é que a ache monótona. É que esse seu expediente artístico de descrever o vazio de uma vida vazia pode não ser percebido pelo leitor e ele pode deixar o livro antes daquele acontecimento (…).
Ao que tudo indica, Lara Resende recebeu a observação com desconfiança, ainda que o remetente tenha classificado O braço direito como “um dos poucos romances brasileiros que nos prendem pela mão e obrigam a ir até o fim”. João Cabral precisou voltar a enviar uma carta em 6 de março do mesmo ano para ser melhor compreendido:
Meu caro Otto,
Não respondi antes a sua carta porque temos andado de mudança. Afinal, passamos para uma casa grande e decente, bastante boa e decente para me curar de Marselha. Mas me curará mesmo? (…) Gostei de sua defesa do livro. Aliás, não creio que nenhuma das observações que fiz tivesse um caráter categórico. O que acontece é que procurei ler seu livro como um leitor ativo e um leitor ativo é um leitor que tenta mudar o que está lendo. Não, necessariamente, para melhorar.
E a missiva seguiu, com uma longa explicação sobre o posicionamento do remetente quanto ao romance. No fundo, Lara Resende sabia que ao olhar de João Cabral, nosso poeta-melhor, nada escapava. Sobre o trabalho poético – intensivo e extensivo – assim escreveu nos últimos três quartetos de “Alguns toureiros”, poema incluído em Paisagem com figuras:
sim, eu vi Manuel Rodríguez,
Manolete, o mais asceta,
não só cultivar sua flor
mas demonstrar aos poetas:
como domar a explosão
com mão serena e contida,
sem deixar que se derrame
a flor que traz escondida,
e como, então, trabalhá-la
com mão certa, pouca e extrema:
sem perfumar sua flor,
sem poetizar seu poema.