Domingo à noite. De repente, nos pegamos assistindo ao VT do campeonato brasileiro de pesca. Zapeamos. Um programa, comandado por um cidadão excessivamente simpático, exibe viagens que talvez jamais consigamos fazer. Para quem ainda tem saúde, a quarentena impõe um horizonte embaçado. Uma melancólica sucessão de domingos. Pisamos em espinhos, galhos e musgos ao vagarmos de pijamas pelos cômodos da casa. O momento é propício para a leitura de O tempo adiado e outros poemas (Todavia), coletânea de Ingeborg Bachmann, organizada e traduzida por Claudia Cavalcanti, lançada no início deste ano.
Bachmann nasceu na Caríntia, região da Áustria meridional. Cresceu em uma paisagem delimitada por montanhas, lagos e florestas densas. Ainda que enxuta, sua obra parece ter nascido de um projeto literário muito claro. Com êxito, a poeta cria um ambiente gélido e úmido, típico do interior austríaco, para moldar seus versos, marcados pelo horror da Segunda Guerra Mundial. Aos onze anos, alguns afirmam, a pequena Ingeborg teria visto as tropas de Hitler marcharem no solo de Klagenfurt, cidade onde nasceu. Em 1932, é fato, seu pai aderiu ao partido nazista.
Não espanta, portanto, o anúncio feito por Bachmann no poema que dá nome ao livro. “Vêm aí dias piores./O tempo adiado até nova ordem/surge no horizonte.” As trevas tornam imperativas algumas atitudes. “Não olha para trás./Amarra teus sapatos./ Espanta os cães/Joga os peixes ao mar./Anula a anileira!”. Adiante, fazemos um “Voo noturno”. Do alto, a autora usa sucessivas indagações para refletir sobre melancolia e temporalidade. “Quem perde a chave de casa?/ Quem não encontra sua cama, quem dorme/nos umbrais? Quando a água voltar a girar o moinho,/quem ousa lembrar-se da noite?”.
Pelo quadro Paisagem do Danúbio (c. 1520-1525), de Albrecht Altdofer, pintor alemão da Renascença Setentrional, podemos apreender o projeto literário de Ingeborg Bachmann. Trata-se de uma das primeiras pinturas em que nenhum ser humano é representado. A obra de arte sustenta-se nos elementos da natureza. Contemplamos uma floresta bravia, cortada por uma estrada de terra e, ao fundo, vemos o Danúbio, segundo rio mais extenso da Europa, ao lado de um castelo. Em destaque, nuvens revoltas saúdam a escuridão.
Na última estrofe de “Curriculum Vitae”, Bachmann, após alguns séculos, pinta a mesma tela com altas doses de melancolia. “Estão levando o céu? Se a terra não me carregasse/estaria deitada e quieta há muito.” Em uma obra noturna e invernal, está claro que a poesia se desenvolve na sucessão de vazios e silêncios. “Deposita uma palavra/no vale de minha mudez/e ergue florestas nos dois lados”, escreve em “Salmo”.
Em O tempo adiado e outros poemas, temos a união de dois mundos. Ainda que fale abertamente sobre a morte, a poeta não negocia o caráter imagético do ofício. Árvores retorcidas e sombras reforçam a morbidez, também construída por escolhas lexicais contundentes, como o uso das palavras “cadáver” e “ossos”.
Como no quadro de Altdofer, Bachmann cria uma realidade habitada pela natureza sem abrir mão de imprimir seu olhar. O uso da primeira pessoa comprova a tese, embora a poeta não precise utilizá-la para dar sinal de vida. “Abaixo de um céu desconhecido/sombras rosas/sombras/acima de uma terra desconhecida/entre rosas e sombras/numa água desconhecida/minha sombra”, diz o poema “Sombras rosas sombras”.
Pela correspondência epistolar, entendemos um pouco mais da personalidade enigmática de Ingeborg Bachmann. O relacionamento conturbado, para dizer o mínimo, com Paul Celan, poeta de obra sublime, rendeu cartas lembradas pela qualidade literária. Embora tenha tentado, é bom dizer, Celan não conseguiu apagar o talento de sua amada. Durante muito tempo, o romeno, que escrevia em alemão, não reconhecia Bachmann como poeta, sequer respeitava a força intelectual da doutora em filosofia.
Os artistas se conheceram na primavera de 1948, em Viena, onde passaram dois meses juntos. “Meu quarto parece um campo de papoulas, ele me presenteia inúmeros ramos dessa flor”, escreve Bachmann à sua mãe. Após a estadia na capital da Áustria, Celan vai viver em Paris. A mudança dá início à famosa correspondência, entrecortada por inúmeras intrigas e bafafás. Em 1949, ele envia uma carta à jovem Bachmann. “Mas você não me diz o quão estão distantes nosso maio e junho. Quão longe e quão perto você está, Ingeborg? Diga-me para que eu saiba se fecho os olhos, ao beijá-la agora.”
No dia 24 de novembro do mesmo ano, a austríaca responde com uma justificativa. “Meu silêncio significa acima de tudo que quero preservar aquelas semanas tais como foram.” Em 1957, o casal se reencontra em Wuppertal, na Alemanha. A paixão é revivida, agora com o devido reconhecimento intelectual a Bachmann. Celan escreve, ao menos, 23 poemas dedicados à amada. Todos marcados pela dedicatória “f.D” (fur Dich, para você).
Ainda que os livros de Ingeborg Bachmann se imponham por características próprias, há pontos de aproximação entre as obras do casal. Além da influência mútua, o trauma da Segunda Guerra percorre a vida dos dois. Eis a gênese de almas inquietas, obcecadas pelo desaparecimento. “Sou cria dessa grande angústia do mundo,/que pende na paz e na alegria/como badaladas no correr do dia/e como a foice no campo maduro./ Sou quem Sempre-Pensa-Na-Morte.”, diz o acachapante “Atrás da porta”.
Abaixo do Equador, devemos escutar os ecos dos poemas de Bachmann com seriedade. No Brasil, paira a síndrome de Elizabeth: há quem desconfie ser imortal. Batemos na madeira, enquanto assistimos bestializados às perdas, que definem a experiência humana. Não se discutem crenças religiosas, pede-se maturidade. A infantilização das crianças virou norma. Elas merecem ouvir algo mais inteligente do que “ele virou uma estrelinha lá no céu”. A dificuldade de falar sobre um assunto desconhecido é compreensível, mas a imaginação traz algumas conclusões. Por exemplo, quando morrermos, não precisaremos acordar cedo no dia seguinte.
A poesia de Bachmann torna-se ainda mais relevante ao rememorar as sequelas causadas por nacionalistas fanáticos que chegaram ao poder. Ao Brasil, um Renascimento impõe-se como forma de sobrevivência. Sem as pinceladas de Albrecht Altdofer, o país deve ser pensado por cores ainda mais diversas. O positivismo não existe mais. Procuramos novos símbolos, porque a pátria pendurou as chuteiras já faz tempo.