Neste 13 de outubro de 2015 faz 47 anos que Manuel Bandeira morreu. Aprendera a esperar a morte desde a juventude, quando a tuberculose lhe caiu como “uma machadada de brucutu” – dizia –, pondo fim à sua sonhada carreira de arquiteto.
Dali em diante passou a viver sob ameaça da doença, que lhe inspirou magníficos poemas sobre a morte. Nem desconfiou que a Indesejada das Gentes só chegaria quando ele tivesse 82 anos de vida. E não viria por meio da tuberculose, como se anunciou, mas trazida por uma hemorragia digestiva –, conta Pedro Nava no depoimento epistolar a Joanita van Ittersum que o Correio IMS publica.
Ganhei essa carta de Joanita quando a visitei, para entrevistá-la, em 1992, em Laren, cidadezinha no Norte da Holanda. Naquele ano eu fazia pesquisa para meu primeiro livro, A trinca do Curvelo, que sairia em 1995. Meu interesse era a década de 1920, quando Bandeira morou na então rua do Curvelo, hoje Dias de Barros, em Santa Teresa. Ali, de onde via a baía de Guanabara “como uma mesa posta” – escreveu ele, recebia a menina para lhe dar aulas de português, matemática, geografia, história e ciências. Joanita nunca frequentou escola primária; não recebeu educação formal: teve no poeta de Pasárgada seu professor particular. Eu não podia deixar de conversar com ela, que conheci octogenária e lúcida.
Nascida no Brasil e batizada Joanita Blank, estava viúva do holandês Gerard Elisa van Ittersum quando a encontrei. Era a baronesa van Ittersum, como informava a plaquinha na porta de seu quarto em Rosa Spier Huis, casa de repouso onde se recolhera. Contou-me que, criança, todas as manhãs ia ao número 51 da rua do Curvelo, onde Bandeira morava, para ter aulas. O convívio diário alimentou a construção de uma amizade sólida entre aluna e mestre, e por causa do livro de Rudyard Kipling, Kim, que narra a história de um mestre, o Lama, e de seu chela, o discípulo, Bandeira e Joanita adotaram o tratamento de Lama e chela. Para ele, a “chela, adorável e adorada”, tratamento que lhe dava nas cartas.
Quando cresceu, Joanita dedicou-se à pintura e chegou a ilustrar, para o jornal A Província, do Recife, algumas das crônicas que Bandeira publicou naquele periódico: a dupla ganhava um bom dinheiro, o que levava o cronista a considerar que os dois eram os star contributers. Graças ao desenho em nanquim feito por Joanita, hoje se pode conhecer uma personagem antológica da poética bandeiriana: Irene, a empregada que cuidava da casa dele na rua do Curvelo, imortalizada nos versos “Irene preta,/ Irene boa,/ Irene sempre de bom humor”. Além dela, retratou os moleques da rua, Álvaro e Ernani, estes em pintura a óleo sobre cartão, personagens das crônicas “A trinca do Curvelo”, “A antiga trinca do Curvelo” e “Zeppelin em Santa Teresa”.
O privilégio de estudar com o poeta se deveu ao fato de Joanita ser filha da holandesa Fréddy Blank, a mulher que Manuel Bandeira amou e a quem se referiu como “toda a afeição de uma vida”. Casada com o brasileiro Carlos Blank, de quem se divorciaria depois, ela criou as duas filhas, Guita e Joanita, no Rio de Janeiro, onde viveu a relação amorosa com o poeta do Curvelo. “Ferozmente discreto”, na definição de Augusto Frederico Schmidt, ficaria conhecido como solteirão, mas a verdade é que teve um casamento moderno, vivido em casas separadas. No mês em que madame Blank, como era chamada, sofrendo de Alzheimer, teve de voltar à Holanda, onde a filha passara a morar, o poeta clamava no “Poema do mais triste maio”:
Meus amigos, meus inimigos,
Saibam todos que o velho bardo
Está agora, entre mil perigos,
Comendo, em vez de rosas, cardo.
Sofria o aguilhão do cardo naquele maio de 1964, quando Moussy (avozinha, em holandês), como ele a chamava, partiu do Brasil. Morreria três meses depois, e a dor das saudades que deixa no já velho bardo é tema do poema “Natal 64”.
Ao deitar-me para a dormida,
Desejara maior repouso
Do que adormecer, e não ouso
Desejar o jazer sem vida.
No seu retiro em Rosa Spier Huis, Joanita preferia acreditar na versão de uma amizade casta entre Bandeira e sua mãe, embora guardasse as cartas em que ele conta da boa disposição com que saía do Hotel Zalm, na Holanda, onde esteve hospedado com a companheira em 1957. Do Rio, em cartas à chela e com a mesma naturalidade, ele exporia seus cuidados de companheiro devotado, sobretudo no que diz respeito à atenção com os horários de remédios e consultas a médicos a partir de 1960, quando Fréddy Blank começou a desenvolver Alzheimer. Imensa ternura marca a correspondência de Bandeira que, com insuperável delicadeza, mantinha Joanita informada de detalhes a respeito da saúde da mãe.
Quem lê Andorinha, andorinha, coletânea de crônicas de Bandeira organizada por Drummond, ficará conhecendo episódios da história dessa aluna especial do poeta na coluna “Joanita e outros”. Eu tinha guardada na memória, por meio das crônicas e dos poemetos bandeirianos, a imagem da menina, e embora soubesse sua idade quando a conheci, levei um susto ao vê-la, quando abriu a porta e se apresentou, de cabelos brancos e curvada, já sem o vigor que Portinari consagrou em tela. Nosso encontro constitui uma das minhas mais caras lembranças. Depois de nos apresentarmos, ela me levou ao hotel Hotel Belle Vue, na cidade vizinha, Blaricum. Saltou do carro rápida, entrou na frente e, não vendo ninguém para nos recepcionar, exclamou, em perfeito português:
Onde estão todos eles?
– Estão todos dormindo
Estão todos deitados
Dormindo
Profundamente
Eu reconhecia os versos de Manuel Bandeira em “Profundamente”. Estabeleceu-se de fato a comunicação entre nós; vi que a poesia iria nos aproximar. Pouco depois, de volta a Rosa Spier, ela abriu o florido baú de madeira comprado em Jacarta, onde morou, acompanhando o marido, que era diplomata. Retirou dele uma caixa retangular com as cartas que Bandeira lhe tinha escrito. Reservou as mais íntimas e me deu quase três dezenas de outras, entre elas, a de Pedro Nava, documento importante da biografia do poeta.
No meio dos papéis descobrimos um pequeno disco do selo Festa, com seis poemas de Manuel Bandeira, ditos por ele próprio. Ouvimos, em silêncio, o primeiro, o “Canção do vento e da minha vida”. Eram mais ou menos três horas da tarde. Eu via, pelas vidraças da porta que dava para o jardim, a ação do vento que arrancava as folhas da cerca viva que margeava todo aquele lado de Rosa Spier e as jogava, violentas, na varanda de Joanita. A voz de Bandeira dizendo a “Canção” traduzia, ao vivo, o outono de Laren, enquanto – assim eu sentia – a minha vida, naquele momento devastada, começava a ficar “Cada vez mais cheia/ De tudo”, como nos versos do bardo.
O vento varria as luzes
O vento varria as músicas,
O vento varria os aromas…
E a minha vida ficava
Cada vez mais cheia
De aromas, de estrelas, de cânticos.
O vento varria os meses
E varria os teus sorrisos…
O vento varria tudo!
E a minha vida ficava
Cada vez mais cheia
De tudo.
Joanita veio ao Brasil no ano seguinte à minha visita. Ela morreria no silêncio de mais um outono de Laren, em 1998.